Sei que do teu coração desfiam fios de raiva e de amargura. Perdeste tudo. a tua força, a tua coragem, o sentido dos teus dias. as tuas filhas choram em silêncio, às escondidas, o pai tornou-se uma ausência, agachado num casulo de solidão
Sei que do teu coração desfiam fios de raiva e de amargura. Perdeste tudo. a tua força, a tua coragem, o sentido dos teus dias. as tuas filhas choram em silêncio, às escondidas, o pai tornou-se uma ausência, agachado num casulo de solidãoO fermento da tua vida desapareceu, como as folhas de papel vegetal onde a tua mulher te embrulhava as sandes que comias às seis da manhã quando terminavas o turno na fábrica. ali foi a tua vida, vinte anos, se calhar mais, vinte e dois, agora não recordas. Não tens força para recordar nada. Os lírios que habitam o teu coração murcharam, os carreiros da tua memória estão entupidos de fel.
Há dois meses o tiro engoliu-te. Disseram que a fábrica tinha de reduzir grande parte da produção – o resto tu ignoras, o que estás agora a aprender: o Betadine não sara o que é da alma. É muito duro para um homem quando te roubam o anel. O teu ouro era a fábrica. Deu-te tudo: um casamento, duas filhas, a alegria da vida e do amor. Também te deu o respeito e a entender o sentido dos dias. agora já não és o que eras. Ficas a dormir as manhãs na cama, não acompanhas as tuas filhas á escola, ao domingo já não vais à missa, quase abandonaste a tua mulher. Não suportas que te digam o que quer que seja, e, muitas vezes, à tarde, desapareces com a tua moto, ninguém sabe de ti. Já não vais à caça, não discutes política e não queres saber dos resultados desportivos do fim de semana. as tuas filhas choram em silêncio, às escondidas, o pai tornou-se uma ausência, agachado num casulo de solidão.
Tens de ter força para partir.como fazias nos melhores dias. Quando das tuas mãos brotavam repuxos de coragem e não desistias. a tua terra é a fé. a massa que te gerou e te viu crescer não tem outro nome. Dentro de ti as sementes não secaram. Sei que estás longe e gostava de ter-te aqui ao meu lado. Estou diante do sacrário, da hóstia consagrada. Sabemos que é aqui que se decide tudo. No coração da noite quando o sacrário é a fonte, a luz, a beleza. a tua vida está toda aqui, inteira, incólume – a fábrica, a tua mulher, as filhas, o que tu és. Rezo por ti, que é o melhor que tenho para dar-te. Peço que vás em frente. Não tenhas medo que o teu coração toque as malhas da aliança e o enlaces no gesto derradeiro. É preciso esse gesto. O gesto da comunhão. aquele que nos dá o dia de amanhã.