Num dia frio de inverno a mãe chegou á escola. Quase pediu desculpa. Já não vinha desde o ano passado. Parecia que as coisas estavam bem, que o filho não trazia problemas. Chamava-se Rodolfo, os outros no recreio chamavam-lhe Rodas
Num dia frio de inverno a mãe chegou á escola. Quase pediu desculpa. Já não vinha desde o ano passado. Parecia que as coisas estavam bem, que o filho não trazia problemas. Chamava-se Rodolfo, os outros no recreio chamavam-lhe RodasRodolfo estava sempre sozinho, nos intervalos quase não falava com ninguém, nas aulas só abria a boca quando os professores o obrigavam. Perdido no meio dos outros, era igual a todos. Na escola todos são parecidos com todos, muitas vezes não se é capaz de distinguir uns dos outros. O Rodolfo é mais um igual aos outros, com tantas negativas como os outros, com tantas faltas de presença na aula como os outros, sempre ausente como os outros. Quando a mãe chegou á escola quase vinha cansada, queria ir embora depressa, não tinha tempo. Esteve toda a noite a trabalhar no hospital, era enfermeira no Ribatejo. Disse-lhe o que se passava com o Rodrigo. Tinha cinco negativas, passavam-se semanas que não vinha á escola, havia disciplinas que não podia faltar mais se não chumbaria o ano. Às vezes da parte da tarde trazia os olhos esbugalhados, não ia almoçar na cantina da escola e não se sabia por onde andava. alguns diziam coisas más, as companhias não eram as melhores e já fora visto em lugares menos apropriados. a mãe dizia-me que não sabia, que tudo isto era novidade, se calhar mentira. Parecia-lhe que em casa o Rodolfo estudava, mas a mãe nunca estava em casa, trabalhava todo o dia, estava sempre fora no hospital, às vezes também á noite quando ia para o Centro de Saúde. Passavam-se semanas que quase não o via, de vez em quando ao jantar, ao domingo quando o Rodolfo não ia jogar á bola. Sabia das negativas, mas não sabia de mais nada, que faltava ás aulas e das companhias que frequentava. a sua vida era o trabalho, o hospital e o ordenado para pagar a casa, as roupas do Rodolfo e o que este lhe pedia. Vivia para o Rodolfo, mas não sabia nada dele. Tinha medo dele quando lhe levantava a voz e lhe ralhava. assustava-se com ele porque lhe podia fazer mal. Tinha dezasseis anos, era quase um homem e aquela casa estava vazia. Naquela casa não havia ninguém. Só ela e o Rodolfo. O pai fora-se embora. Conhecera outra mulher e a mãe do Rodolfo ficara naquela casa que era a casa dos seus sonhos perdidos, da vida que ficou a metade. Olhou em frente e disse que a sua vida ficara a metade. Olhava em frente, do outro lado o rio, o Tejo, e que a sua vida estava a metade. Que não suportava a vida que tinha, vivia para seguir em frente, mas não suportava a ausência do marido, a dor da casa vazia. amava o Rodolfo, era o seu filho, mas não sabia nada dele, acompanhava-o à distância para a dor não a esmagar. a solidão do Rodolfo era a solidão da sua vida, aquilo que tinha de mais belo e que deixara fugir. aquilo que tinha não era uma família, mas um esboço, um andar em frente, porque a vida é andar em frente. as lágrimas rolavam-lhe devagar, o rosto firme, que tinha medo de perder o Rodolfo, a pessoa a quem amava. Doía-lhe muito estar sozinha, o seu maior sofrimento era estar sozinha. Ter um filho e não falar com ninguém do seu filho, da relação que tinha com o filho. Não era capaz de falar do seu filho. O Rodolfo era a ausência do pai, de uma vida que se consumava no esforço de não assumir a derrota. Que o maior sofrimento da sua vida era não ter ninguém com quem falar, a sua maior tristeza a relação que sentia perder todos os dias com o Rodolfo. O que mais dói é não ter ninguém para falar, pensava muito nisso. Não ter ninguém. Ter um marido que se foi embora. Ter um filho de quem se tem medo. O que fez na vida para ter chegado aqui? Será que alguma vez posso sair disto? Como?