Ser cristão no mundo actual: Serafim Ferreira e Silva, bispo de Leiria-Fátima, em entrevista exclusiva à Fátima Missionária.
Ser cristão no mundo actual: Serafim Ferreira e Silva, bispo de Leiria-Fátima, em entrevista exclusiva à Fátima Missionária. Tem esperança nos jovens que, diz, sabem reconhecer o que é mais importante: Deus. Menos peregrinos no Santuário de Fátima não é factor de preocupação porque a prática pode fazer-se no adro da igreja ou mesmo na discoteca

Fátima Missionária: Nota-se algum afastamento dos jovens da Igreja, da prática dominical…

SERaFIM FERREIR a SILVa: Uma afirmação tem de ser provada. Você vê com os seus olhos, eu vejo com os meus óculos. Sinto com a minha pele e com o meu coração. E verifico que não é verdade. Verifico que os jovens não regressam; procuram. Domingo passado viajei a pé, desde Leiria até Fátima. Milhares de jovens acompanharam-me; cantaram; rezaram. Buscavam com seriedade alguma coisa. O que aconteceu neste domingo, 13 de Março, há dois, três, cinco anos não se notava tanto.

a religiosidade faz parte do ser humano. a prática, a manifestação pode ser diferente. O cristão de hoje é diferente do cristão de há 50 anos. a prática religiosa pode fazer-se na missa dominical; mas pode fazer-se também na doutrina social. Pode ser no adro da igreja; mas também pode e deve ser na discoteca; ou no mundo laboral.

Eu sou mais optimista. Verifico que a prática a partir da vida í­ntima de inspiração cristã vai-se comunicando por osmose a um povo que caminha e que vai progressivamente melhorando. Não sou pessimista, dizendo que há fuga, ou que há afastamento. Há outra maneira de estar.

FM : Nota de alguma forma que há uma diferença.

SFS : Isso tem de ser explicado. as grandes ideias e conclusões sociológicas não se improvisam. São sempre compostas. Têm percentagens. Temos de ver, com perspectiva de “girafa”: para ver o conjunto; e com perspectiva de “formiga”, para ver o pequenino, ver os pormenores. Um bom sociólogo é aquele que não menospreza a parte, mas objectiva o todo. Nessa visão de carácter sociológico não sou nada pessimista. O povo é instintivamente religioso. a raiz cristã do povo português não apodreceu; não tem filoxeras.

FM: a prática religiosa diminuiu em várias zonas do país, de acordo com o último censo. Temos comunidades mais envelhecidas, falta de vocações. São indicadores…

SFS: Temos de distinguir. Uma coisa é a prática religiosa, outra a prática sacramental, ou litúrgica. a prática religiosa está no ser humano. Pode manifestar-se no estádio de futebol. ao ser homem pensante, sinto, amo, verifico a jogada, vejo que há uma falta, que há um juiz, um árbitro… Estou a praticar a minha religião e a reagir. Se fala de “prática religiosa”, com o sentido de menos participação litúrgica, é óbvio que baixou.

a prática religiosa não é só a missa dominical. Já há pouco falei do respeito da doutrina social, da pontualidade, das leis fiscais, do diálogo inter-classes, inter-religioso. Faz parte do ser humano onde quer que se esteja, quem quer que seja.

FM: Menos meio milhão de peregrinos em 2004, no Santuário de Fátima, segundo fonte oficial. Isso preocupa o bispo da diocese?

SFS: Não me pode provar que houve menos peregrinos. Fazer contas não é fácil. Cada um toma o papel, se calhar não usa computador, não contou as pernas e dividiu por dois. Se calhar…

Não. Não acredito que tenha diminuí­do. Só que ” e já falei aos responsáveis ” temos de ser sérios. Nem mentir, empolando; nem diminuir, ocultando. a nossa seriedade é pela contagem visual, sejam peregrinos nacionais, sejam estrangeiros.

Creio que até tenham aumentado. Verifico que nos fins-de-semana, há sempre muitos milhares de peregrinos. O que não acontecia há 10 ou 15 anos. Essas contagens nem sempre são bem feitas. Ou até, se calhar. Não são feitas.

Dizer que houve 500 mil a menos, é entre os grupos que se inscrevem. Hoje é mais fácil conhecer o programa, está tudo organizado. O grupo não precisa de se inscrever para garantir o seu lugar aqui ou acolá. E então vem. além dos grupos organizados, há muita gente que vem por sua iniciativa própria, sem se inscrever. Isso altera a estatí­stica.

FM: Há quem venha aqui e não tenha prática paroquial…

SFS: O santuário de Fátima é um pulmão bem situado. Corresponde a uma ansiedade das pessoas que vivem a um ritmo muito acelerado. Procuram o santuário de Fátima. Os acessos rodoviários são mais fáceis. a locomoção motora, no sentido de cada um ter o seu carro, cada uma família até pode ter mais do que um carro.

O santuário de Fátima é um convite à interiorização. Esse fenómeno vai acontecer. Chame-se turismo religioso, seja o que for. O santuário de Fátima, em Portugal, ou outros santuários espalhados pelo mundo inteiro, são pulmões, são oásis, são lugares de encontro, de convergência, onde as pessoas se reencontram consigo, cada um, e com os outros. Numa manifestação de fé e, eventualmente até musical ou gestual. E tudo isso dá um certo equilí­brio à pessoa. Dá uma certa harmonia. a religiosidade pode não estar na contagem da prática dominical. Mas está na análise deste fenómeno psico-sociológico, que é diferente de há 50 anos atrás.

Há 50 anos na minha aldeia tocava o sino e toda a gente ia à igreja. Era a torre que dava as horas. Era o prior ou o abade que dava os avisos. agora não. Não é só o jornal, a internet, a televisão. Há uma comunicabilidade, uma mobilidade muito diferente de há 50 anos. a prática religiosa tem de ser vista assim. é na missa de domingo, onde há uma leitura, há um comentário que, eventualmente, não diz nada à vida, e os mais novos dizem que é tudo uma seca. O grupo musical não preparou e o acólito leva a alba meia caí­da. Sob o aspecto estético, não tem beleza e, então, não tem sabor. Não me entusiasma; vivo a minha religiosidade de outra maneira.

ainda há pouco tempo um senhor que é mação ” ele declarou-se agnóstico, mas eu sei que ele pertence a uma loja ” disse-me: «Quero dizer-lhe que lhe estou muito agradecido por o senhor ter apoiado uma televisão temática. Quando estou em casa sozinho, deleito-me a ver. Quando estão os meus filhos, tenho um bocado de vergonha». Este homem, apesar de ter um compromisso com um grupo ideológico, sente a religiosidade dentro de si e quer manifestá-la com sinceridade. Diante de um Deus invisí­vel, a que ele chama arquitecto, ou seja quem for. Esta religiosidade está em todo o homem.

Estou convencido que o peregrinar a Fátima, a infra-estrutura do santuário, mesmo esta casa da Consolata, não vão precisar de fazer sapatos ou outra actividade; vão continuar a ser um serviço peregrinacional, isto é de acolhimento, de pessoas que vêm e procuram não apenas uma maçã ou um livro; mas procuram alguém mais: a Deus.