Quando chegar a casa, vou mudar o pessegueiro que está muito à sombra; fico a cuidar da horta, enquanto vais ao cabeleireiro e ficas com os pequenos; pode-se dar uns passeios aos domingos, visitar a família e os amigos?
Quando chegar a casa, vou mudar o pessegueiro que está muito à sombra; fico a cuidar da horta, enquanto vais ao cabeleireiro e ficas com os pequenos; pode-se dar uns passeios aos domingos, visitar a família e os amigos?Natália ouvia o discurso do marido, quase sem pontuação, tão rápido era o seu pensamento. Desde que Jaime marcou no calendário, com um círculo, o 16 de Dezembro, data dos bilhetes de avião comprados há sete meses, qualquer situação desencadeava um turbilhão de ideias. Era como se tudo estivesse já a acontecer. Tinham partido de Portugal, há 42 anos, com muitos sonhos no saco e uma dose sempre insuficiente de anestesia à saudade. ambos fizeram muitas idas e vindas, deram muitos abraços de despedidas e de reencontros. Sonharam vezes sem conta com este 16 de Dezembro, deitaram fora os desejos tentadores de parar. Soltaram a exigência do conforto, ultrapassaram a solidão. até da língua materna se conseguiram despir. Porque não desistiram? Havia um projecto maior a exigir que se soltassem de tudo isso. Conseguiram fazê-lo, porque encontraram felicidade em tantos outros cantos, em tantos amigos, em tantas alegrias, noutra língua. Quando, finalmente, chega o momento do grande prémio, já se vêm a trocar uma casa minúscula por uma casa construída à sua medida; a saudade, por visitas aos filhos e netinhos, e tantos outros motivos de felicidade. Mas há coisas que Jaime e Natália não soltam nunca: os amigos, a sabedoria adquirida, a arte de fazer cedências e de libertar-se do supérfluo para encontrar o essencial. Sílvia candidatou-se ao curso dos seus sonhos. Tem nota para ser admitida. Foram muitas lutas até chegar aqui. Mas, a mãe deita contas à situação da família e percebe que não consegue suportar a despesa. Tudo balança numa corda frágil que antes foi sólida. Que fazer? a mãe dá tudo o que pode. Sílvia vai ao gabinete de acesso ao Ensino Superior e investiga as alternativas na faculdade da sua terra, compatíveis com as possibilidades da família. Solta o sonho que não pode acontecer, mas não fica de mãos vazias. Traça outro projecto sólido e lança-se a concretizá-lo, de sorriso largo. até porque há caminhos paralelos, por onde se alcança bens ainda maiores. a família está com ela, dando tudo o que pode e reconhecendo a grandiosidade da sua persistência. Matilde deu entrada no hospital, na véspera da cirurgia. a diabetes descontrolada não lhe permite salvar o pé esquerdo. Vê tudo a desmoronar: a vida profissional, as exigências familiares, a autonomia e até a sua imagem. Tudo parece ter caído por terra, sem poder fazer nada para o impedir. Três meses depois, Matilde levanta-se sorridente da cadeira para acolher Júlia que entra no gabinete do serviço de cirurgia. a equipa clínica pediu-lhe para mostrar à Júlia como é possível, na vida real, viver completa, sem a perna que irá perder na semana seguinte. a alegria sincera de Matilde e a descrição da vida intensa que tem, com aproveitamento do tanto possível, vão, gradualmente, oferecendo a Júlia o novo oxigénio que desintoxica dos fantasmas e faz olhar para a vida como fonte dinâmica de oportunidades, sempre renovadas quando abraçadas. agradecidas por isso, ambas perceberam que queriam e estavam a agarrar a vida com olhos de Mais além!