José vagueava os pés no caminho empedrado. O passo lento arrastava mágoas de sempre, acumuladas em jogos de esquecer. Na bengala, balanceava me­mórias e recordações fragmentadas, rotas pelo desgaste do tempo e da dor
José vagueava os pés no caminho empedrado. O passo lento arrastava mágoas de sempre, acumuladas em jogos de esquecer. Na bengala, balanceava me­mórias e recordações fragmentadas, rotas pelo desgaste do tempo e da dorCabisbaixo, algaraviando para si mesmo como se não houvesse quem o ouvisse, José percorria a rua deixando o tic-tic já conhecido da bengala. Familiar era também o shrrap de um saco de plástico, onde carregava os pertences para o dia: pão, bananas que as gengivas conseguiam mastigar e, às vezes, uns pacotes de quarto de litro de leite. Quem olhasse para a face de José diria que ele nunca sorrira na vida. Tapava os olhos com a pala da sua barreta gasta, tão gasta quanto as suas memórias. Mulher comunicativa e sensível, Isabel era empregada doméstica, numa casa com um lindo jardim sobranceiro à rua que José percorria no regresso ao seu quarto arrendado. Costumava observar aquele velhinho cansado, com expressão zangada. Teve vontade de lhe dizer que lhe desejava um bom dia. assim o fez quando o viu a passar:- Bom dia, senhor! Está bom?Não ouviu resposta. Nem sequer um virar de cabeça. apenas um resmungar entre dentes. Isabel não se poupou a esforços para estar junto ao muro na hora de passagem do senhor José. Rasgava-lhe o mais bonito sorriso e desejava-lhe um bom dia luminoso. Pouco a pouco, a resmunguice passou a silêncio. Duas semanas depois, quando podava as roseiras, Isabel ouviu o tic-tic e o shrrap característico. Espantada, viu o velhote sentar-se no muro, como se fosse um banco de jardim. – Bom dia, senhor José! Cansado?- Hã! Estou velho!- Nada disso! Quem anda tanto como o senhor José está em forma para a corrida de São Silvestre. – Não gosto disso. Nem de viver eu gosto! – disse rabujando. E continuou:- Viver é duro! E a vida é mesmo um fado. Já estou cansado e vou-me sentar aqui um bocado. E deu uma gargalhada, mostrando as gengivas desdentadas, numa expressão encolhida, a parecer um garoto envergonhado. Isabel acompanhou-o na gargalhada, espantada com aquela revelação:- Senhor José, você é um poeta!- Poeta não sou nem virei a ser. Só faço versos quando me apetecer. Desta vez ouviu-se uma gargalhada em uníssono que teceu fios quentes de unidade entre aquelas duas pessoas tão diferentes. E talvez não. Mais quadras e mais gargalhadas fizeram daquela tarde um momento inesquecível na vida do senhor José e na alegria de Isabel. a partir de então o muro passar a ser o banco de José. Descansava e esperava por Isabel. Fazia versos de ocasião, riam juntos e sentia-se mais pessoa. Um dia, Isabel recebeu um telefonema. Uma enfermeira do serviço de cardiologia do hospital pedia-lhe que visitasse o senhor José, que estava hospitalizado. Dera este endereço, como sendo o único contacto familiar. Isabel levou um bloco de notas e um lápis. Lá estava o senhor José com expressão zangada. Fez as queixinhas do que estava mal no Hospital. Mas, pouco depois, já gargalhavam juntos.com pompa, Isabel deu brilho àquilo que ele tinha para oferecer. anotou cada verso e assegurou que tentaria editá-los na revista do centro social e paroquial. José riu-se feliz, deixando perceber o tamanho do sonho de ser gente para alguém. Sonho que guardou encolhido até encontrar alguém que lhe desejou e fez acontecer um Bom Dia. José já não é um homem só!