Eram três da tarde, quando, a 16 de abril de 1985, desci as escadas do avião em Joanesburgo, proveniente de Lisboa. Mais de 12 horas sobre o atlântico, devido ao boicote que impedia o regime racista da África do Sul de usar o que é de todos: o espaço aéreo
Eram três da tarde, quando, a 16 de abril de 1985, desci as escadas do avião em Joanesburgo, proveniente de Lisboa. Mais de 12 horas sobre o atlântico, devido ao boicote que impedia o regime racista da África do Sul de usar o que é de todos: o espaço aéreoDa Europa do meu passado, fui conduzido ao futuro em África, murmurando baixinho: ?Este é agora o meu país. Está aqui o meu futuro. Este será o meu povo. Obrigado, Senhor!? Eram os tempos do big onslaught, isto é, da grande turbulência política, social e humana. Iria culminar, nove anos mais tarde, com a libertação e o acesso à democracia da maioria oprimida. Mas as consequências da opressão iriam permanecer durante tempos incalculáveis: uma sociedade dividida, em que as pessoas não tinham nome, mas apenas a cor da pele. Fui enviado para esse mundo, há 26 anos. Um mundo onde a Igreja, para além de ser minoritária – seis por cento da população – se colocava ostensivamente do lado da maioria oprimida. Igreja mergulhada no mar imenso de igrejas e grupos religiosos de toda a espécie, que se autoproclamam os verdadeiros descendentes do Nazareno. Nas periferias urbanasUm pequeno grupo de missionários da Consolata dedi­cava-se com afinco à evange­lização dos mais desfavo­re­ci­­dos. Nos bantustões e nas pe­­riferias urbanas. Criavam oportuni­­da­des, iniciavam co­­mu­­ni­da­des, formavam animado­res, abriam novas presenças. a inspiração vinha-lhes do seu fundador, José allamano, que unia promoção humana e evangelização. a presença nu­ma só diocese dava-lhes unidade e determinação. O carinho e apoio do bispo diocesano fortalecia-os nas dificuldades: houve quem fosse expulso, quem fosse esfaquea­do e quem, como eu, se visse de armas militares apontadas no coração da noite. Era o mundo exaltante da missão! Celebrei a minha primeira Eucaristia com sete pessoas. Era o meu primeiro domingo em terras de missão. Depois foi a aprendizagem da língua: nove longos meses de silêncio e escuta. Foi o tempo para nascer de novo, para abrir os olhos ao mundo que Deus me oferecia, para recomeçar com uma nova identidade. Sonhos truncadosNuma segunda-feira, a meio da manhã, visitei a Thembi. Era bela, de olhos vivos e inteligentes que lhe iluminavam a face arredondada e afável. adoentada, tossia muito. Dizia que isto era passageiro. Daí a três dias tinha o exame final de enfermagem. Queria curar-se, depressa, para o exame. aos 21 anos, estava ansiosa por devolver aos pais o fruto das suas poupanças e a alegria de uma vida com futuro. Perguntou-me: Porque deixaste a tua família e vieste para este país?. Rezámos: Vim para que tenhais a vida e a tenhais em abundância. Quinta-feira era o dia do exame. Thembi não foi à universidade. O local do exame tinha mudado. Fez o exame final em frente de Deus. a SID a colhera mais uma das suas inúmeras vítimas. Um final inesperado e abrupto!O missionário sente o amargo da frustração. Porquê? Já me rendi à evidência de não ter palavras para responder. Só me resta a presença e o olhar. É tão profundo o olhar dos jovens naqueles últimos dias! São milhares, cada dia. até ontem oprimidos, hoje destroçados pelo monstro da SIDa. Sonhos truncados, juventude e beleza interrompidas, futuro irremediavelmente adiado, mãos apertadas, gestos e palavras com sabor a eternidade.