O nome Mediterrâneo, que significa “entre terras” em latim, diz quase tudo: este mar, que é suposto unir Europa, África e Ásia, é também um fosso e para milhares de pessoas todos os anos igualmente um cemitério, pois aqueles que vindos de leste e do sul em busca do Eldorado que imaginam existir no norte correm riscos extremos.

“O principal problema hoje no Mediterrâneo são as vidas perdidas no mar, vítimas das redes de tráfico humano”, opinava em finais de novembro o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, em conversa à margem da V Reunião Regional da União para o Mediterrâneo (UpM). Dias depois, já em dezembro, o Papa Francisco fazia um alerta no mesmo sentido, mas num tom ainda mais dramático: “Se não resolvermos o problema dos migrantes, corremos o risco de fazer naufragar a civilização, hoje, na Europa, tal como as coisas estão, a nossa civilização. Não apenas naufragar no Mediterrâneo. Não, a nossa civilização. É preciso que os representantes dos governos europeus cheguem a um acordo”.

Francisco regressava a Roma, depois de uma visita à Grécia e ao Chipre, a 35.ª deslocação internacional do seu pontificado iniciado em 2013. E já antes na ilha de Lesbos, onde se amontoam em campos os refugiados que cruzam o Egeu para chegar à Grécia, o Papa tinha denunciado os que põem os interesses políticos acima dos direitos humanos. Foi a segunda ida de Francisco a Lesbos, e ao mesmo campo de refugiados, de gente vinda da Síria, do Iémen, do Iraque, do Afeganistão e de vários outros países afetados pela guerra ou pela violência nas suas sociedades.

Com uma área de 2,5 milhões de quilómetros quadrados, o Mediterrâneo banha 22 países, desde a imensa Argélia, que é o maior país de África, até ao Mónaco, minúsculo principado incrustado na costa francesa. E esses 22 países não só pertencem a três continentes como são de uma enorme diversidade, como a própria questão da dimensão faz realçar. Aliás, a única vez que toda a região mediterrânea, com os seus 46 mil quilómetros de costa recortada, esteve unificada foi na era do Império Romano, há mais ou menos dois mil anos, que se estendia da Península Ibérica e de Marrocos à Anatólia e ao Levante. Aliás, para reafirmarem esse controlo total sobre o mar, a sua transformação no coração líquido do império, os romanos chamavam-lhe ‘Mare Nostrum’, que significa “mar nosso”, em latim.

Se o norte hoje é cristão, o sul muçulmano e o leste também de maioria muçulmana mas um pouco mais diverso (por causa do judaísmo em Israel e dos muitos cristãos no Líbano e em Chipre), tal resulta de um longo processo histórico, primeiro a cristianização do Império Romano a partir do século IV, depois o advento do islão no início do século VII. Nunca mais nenhuma potência conseguiu o domínio absoluto sobre o Mediterrâneo, quando muito os bizantinos conseguiram algum tempo controlar a metade oriental e depois os otomanos também e até de uma forma mais decisiva.

À divisão religiosa seguiram-se dois caminhos diversos de desenvolvimento e se na Idade Média os árabes até lideravam em muitas áreas da ciência e da técnica, com o Renascimento a dar aos europeus a dianteira em termos de desenvolvimento e sobretudo de poder militar, o que permitiu a países como a Inglaterra, a França, a Espanha, Portugal, a Holanda, a Bélgica, a Alemanha e a Itália criarem, mais cedo ou mais tarde, impérios coloniais mundo fora. Mesmo o Norte de África e o Médio Oriente não escaparam, com Espanha e Itália e sobretudo França e Inglaterra a estabelecer colónias e protetorados.

Apesar de já ter passado mais de meio século sobre as últimas independências no Magrebe, essa época de submissão do sul ao norte ainda marca as relações entre as duas margens do Mediterrâneo, basta lembrar que a Líbia chegou a exigir à Itália compensações pela colonização, a Argélia exige ainda hoje da França o reconhecimento das atrocidades da Guerra da Independência e Marrocos continua sem ver a Espanha reconhecer a sua soberania sobre o antigo Sara Ocidental, mantendo também uma reivindicação latente sobre Ceuta (conquista portuguesa em 1415, mas cidade espanhola desde 1640) e Melilla. E do lado europeu, não faltam os políticos que jogam com os receios do terrorismo ou de uma invasão islâmica, exacerbando os problemas de integração que, de facto, possam existir.

Por tudo isso, a migração é fator de tensão, talvez até o maior. O Alto Representante da União Europeia para a Política Externa, o espanhol Josep Borrel, chegou a tweetar que a diferença de rendimento médio entre a Europa e o norte de África era de 13 vezes mais para a primeira. Com esta diferença não admira que a União Europeia seja vista como o Eldorado e que a pressão migratória seja enorme, juntando também pessoas vindas da África subsariana. Quem beneficia são as máfias, os traficantes de gente, que prometem um bilhete para uma vida melhor a troco das poupanças da família e no fim se limitam a pôr em alto mar, em frágeis embarcações, os pobres em desespero. Para piorar tudo, os países do sul alternam em reprimir duramente a migração para contentar os parceiros europeus e em fechar os olhos às atividades mafiosas se tal permitir fazer pressão política sobre os mesmos parceiros europeus.

Os números de migrantes que morrem afogados no Mediterrâneo têm vindo a baixar desde o pico dos cinco mil registados em 2016. Em 2020 terão sido cerca de 1400, este ano outros tantos. São estimativas das ONGs e pecam certamente por defeito, mas evidenciam a tragédia que acontece quotidianamente. E as demografias contraditórias da Europa (poucos nascimentos, falta de mão de obra) e da África (muitos jovens, escassez de empregos) só podem continuar a alimentar o fenómeno migratório ilegal se algo para regularizar a emigração para norte não for negociado.

O embaixador de Marrocos em Portugal, Othmane Bahnini, afirma que iniciativas como a do Dia do Mediterrâneo, desde este ano sempre celebrado a 28 de novembro, “deve incitar os povos mediterrânicos, tanto a norte como a sul, a fomentar a emergência de uma identidade comum, ao serviço da estabilidade e da prosperidade partilhada no Mediterrâneo. Este objetivo requer um diálogo contínuo, sereno e descomplexado entre os países das duas margens do Mediterrâneo, a fim de enfrentarem juntos os desafios comuns e se projetarem no futuro”.

Já Marta Betanzos, embaixadora de Espanha em Portugal, realça, por seu lado, a importância dos países ibéricos cooperarem neste espaço geopolítico: “O Mediterrâneo é sem dúvida uma região onde os esforços políticos e diplomáticos de Espanha e de Portugal caminham de mão dada, com uma afinidade e complementaridade de pontos de vista muito proveitosa para avançar no empenho de trazer paz, estabilidade, progresso económico e inclusão social à região”.

Portugal vive uma situação muito especial no que diz respeito ao Mediterrâneo. Se por um lado o mar não banha o país, por outro a geografia, a história e a cultura amarram o país ao mundo mediterrâneo fortemente. O fenómeno migratório ilegal tem, porém, poupado Portugal, mesmo que certa regularidade de chegada de barcos ao Algarve a partir de El Jadida crie suspeitas de possível criação de uma nova rota de tráfico de pessoas. A distância de mais de 500 quilómetros entre El Jadida e Faro mesmo assim dificultará o sucesso de uma eventual rota portuguesa (200 quilómetros no mínimo entre Tanger e Vila Real de Santo António), pois, em alternativa, apenas 16 quilómetros separam Marrocos de Espanha no estreito de Gibraltar. Mas numa Líbia em caos político as redes de migração ilegal agem sem se preocupar com as longas distâncias por mar até Itália.

Da integração económica à gestão da migração, os destinos das várias margens do Mediterrâneo estão, pois, ligados. Até porque existe uma ameaça que ignora se uns são mais ricos e outros mais pobres, ou a que Deus rezam, e essa ameaça são as alterações climáticas. Em entrevista recente, o egípcio Nasser Kamel, secretário-geral da UpM, alertava que a organização se centrava naquilo que eram prioridades para todos. E dentre essas, o combate às alterações climáticas assumia uma dimensão especial, pois “o Mediterrâneo aquece 20 por cento mais depressa do que o resto do mundo; numa região muito pobre em água, os recursos hídricos vão diminuir em 25 por cento; a subida do nível do mar – estou a falar do Mediterrâneo, não do Atlântico – está previsto atingir um metro no ano 2100, o que o torna um dos 20 sítios mais atingidos por este fenómeno”.

Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN

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