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O Papa Francisco vai visitar no início de setembro o Cazaquistão, antiga república soviética independente desde 1991 e que apesar de ter uma maioria muçulmana conta com um quinto de cristãos na sua população de 19 milhões. Naquilo que são hoje os países da Ásia Central, e também na vizinha Mongólia, o cristianismo chegou primeiro sob a forma do nestorianismo, doutrina que provém de Nestório, patriarca de Constantinopla na primeira metade do século V. Nas vastas estepes, onde viviam as tribos nómadas que estão entre os antepassados dos cazaques, até perto do ano 1000 predominou o tengrismo, religião panteísta em que os xamãs tinham muita influência. Pouco a pouco os povos túrquicos da região foram sendo islamizados (os mongóis tornaram-se sobretudo budistas) mesmo que mantendo parte das crenças tengristas.

Gengis Khan, chefe mongol que é também reclamado como um dos seus por muitos cazaques (certamente boa parte das suas tropas seriam túrquicas) tinha nestorianos no seu círculo íntimo e o vastíssimo império que criou no século XIII incluía obviamente diversas populações cristãs. Quando o mercador veneziano Marco Polo chegou à China, onde era imperador Kublai Khan, neto de Gengis Khan e filho de uma nestoriana, todas as terras euro-asiáticas que percorreu eram dominadas por uma aliança de povos denominados de tártaros e fiéis aos descendentes do mítico líder guerreiro. Estávamos na segunda metade do século XIII e na corte de Kublai Khan havia representantes de várias religiões, incluindo cristãos nestorianos, mas também alguns católicos como os Polo, o pai e o tio de Marco. A ideia era promover o debate sobre os méritos de cada religião para um dia uma delas ser a escolhida e o clima era de tolerância.

Entusiasmado com as notícias que recebia sobre a presença de cristãos na corte mongol, Inocêncio IV (Papa entre 1243 e 1254) enviou uma missão liderada pelo frade dominicano francês André de Longjumeau (que fez outra ao serviço do rei de França). Antes, a missão de contactar com os grandes khans chegou a ser atribuída a um português, Frei Lourenço de Portugal, mas não se sabe as razões deste não ter seguido para o Oriente. De qualquer forma, o cristianismo não se conseguiu impor na estepe asiática naquela época e só a partir do século XVII, com a expansão imperial russa, começou a haver populações cristãs na Ásia Central, em regra cristãos ortodoxos.

Francisco não será o primeiro Papa a visitar o Cazaquistão. João Paulo II esteve em 2001 em Astana, a capital em 2019 rebatizada de Nur-Sultan em homenagem ao primeiro presidente do novo país. Na época, o Papa polaco, que celebrou várias missas incluindo na Catedral de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, fez questão de elogiar a antiga república soviética, presidida então por Nursultan Nazarbayev, como “um país que é exemplo de harmonia entre os homens e mulheres de diversas origens e crenças” e lançou “um fervoroso apelo a todos, cristãos e seguidores de outras religiões, para que cooperem a fim de edificar um mundo sem violência, que ame a vida e se desenvolva na justiça e na solidariedade”. No contexto da chamada Guerra ao Terror, iniciada pelos Estados Unidos da América em resposta aos atentados terroristas do 11 de setembro, João Paulo II disse ainda que não se podia “permitir que o que aconteceu cause uma exasperação das divisões. A religião nunca deve ser utilizada como motivo de conflito. Deste lugar, convido quer os cristãos quer os muçulmanos a rezar intensamente ao único Deus omnipotente que a todos criou, para que possa reinar no mundo o bem fundamental da paz. Que as pessoas de todos os lugares, fortalecidas pela sabedoria divina, trabalhem por uma civilização do amor, na qual não haja espaço para o ódio, a discriminação e a violência. Com todo o coração imploro a Deus para que mantenha a paz no mundo. Ámen”.

Calcula-se que 20 por cento dos cidadãos cazaques sejam cristãos. E seja em Nur-Sultan, seja em Almaty, a antiga capital, as igrejas das várias confissões existem e fazem parte da paisagem urbana, a par das mesquitas. A velha ligação à Rússia, com os czares a virem em apoio dos cazaques contra inimigos externos e depois a assumirem o controlo do canato, explica a preponderância de ortodoxos, mas as deportações na era soviética, de alemães, polacos, lituanos e outros, são a razão de ser das comunidades católicas. Talvez uns 150 mil, os católicos cazaques distribuem-se por quatro dioceses: Nur-Sultan, Almaty, Karaganda (onde se situa a Catedral de Nossa Senhora de Fátima) e Atyrau.

Se João Paulo II permaneceu no Cazaquistão entre 22 e 25 de setembro de 2001 (ainda a jovem nação não celebrara dez anos), Francisco estará a 14 e 15 de setembro deste ano em Nur-Sultan e a viagem foi tema de uma conversa em abril com o presidente Kassim-Jomart Tokayev, no cargo desde 2019. “Vemos como diverso e unido é o vosso país. É a base para a estabilidade. Sentimo-nos felizes que no Cazaquistão percebam isso. Podem contar com o meu apoio, aprecio os vossos esforços”, declarou o Papa argentino, sabendo que além de muçulmanos e cristãos, o país da Ásia Central tem também comunidades judaicas, budistas e outras.

Francisco participará em Nur-Sutan no Congresso dos Líderes das Religiões do Mundo e Tradicionais, cuja primeira edição teve lugar em 2003 e a prevista para 2021 foi reagendada para 2022 por causa da pandemia da covid-19. O local da reunião é um edifício em forma de pirâmide, de 62 metros de altura, desenhado pelo arquiteto britânico Norman Foster. Também é de Foster outro edifício emblemático de Nur-Sultan, o Khan Shatyr, cuja estrutura lembra uma tenda, homenagem ao estilo de vida tradicional dos cazaques. Fundada em 1830 por cossacos, a atual capital começou por se chamar Akmola, foi depois Tselinogrado, novamente Akmola, a seguir Astana (que quer dizer, simplesmente, “capital”, em cazaque) e em 2019, 12 anos depois da elevação a capital, ganhou o nome de Nur-Sultan. Curiosamente, a Catedral de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, apesar de ser de construção recente, tem traços muito modestos quando comparada com a exuberância arquitetónica da capital.

Em 2001 a visita papal foi um desmentir da inevitabilidade da tese do choque de civilizações, agora esta de Francisco está a ser planeada num momento em que tropas russas continuam na Ucrânia a tomar território e Moscovo está sob sanções do Ocidente e visa tentar mostrar que o pluralismo pode existir no antigo espaço soviético. Pluralismo religioso, mas também pluralismo político, que foi o objetivo do referendo constitucional de 5 de junho promovido por Tokayev. Diplomaticamente, pode ser relevante o encontro entre o Papa e o patriarca russo Kyril.

As quase três décadas de governação de Nazarbayev foram marcadas por uma certa prosperidade financiada pelas receitas do petróleo e do gás natural. Antigo dirigente comunista, tão respeitado que Mikhail Gorbachev o queria para vice-presidente, Nazarbayev promoveu a cooperação entre cazaques e minorias e também foi o campeão de uma diplomacia com várias frentes, procurando boas relações com a Rússia, mas também com a China, os Estados Unidos da América e a União Europeia. Fez igualmente o Cazaquistão renunciar às armas nucleares, o que foi muito aplaudido mundo fora. Mas o pai da independência deixou que um círculo de próximos, até familiares, abusassem da ligação ao poder. Tokayev, um protegido de Nazarbayev mas com fama de incorruptível, aproveitou com pragmatismo, mas sobretudo inteligência, os protestos de janeiro contra o aumento dos combustíveis (que se tornaram violentos), para pôr ponto final à influência política do patrono, sem porém renunciar à parte positiva da herança, como a ausência de conflitos étnicos e religiosos, uma raridade nas 15 repúblicas resultantes da desagregação da União Soviética.

O Papa vai assim encontrar um Cazaquistão em transformação, Estado laico habitado por uma maioria de muçulmanos que, na linha dos povos túrquicos, tem uma visão moderada do islão, onde a liberdade religiosa existe e se os nestorianos são só uma memória ténue (a dinastia Ming perseguiu-os na China e hoje a comunidade tem apenas ligeira presença no Iraque) não falta, porém, uma grande diversidade de cristãos, até as Missionárias da Consolata, que desde 2020 vivem nas proximidades de Almaty.

Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN