Quando Abdelaziz Bouteflika, antigo presidente da Argélia e desde muito jovem figura mítica da FLN, morreu em meados de setembro, não faltou quem notasse, lendo o obituário, que nasceu em Oudja, cidade de Marrocos, filho de argelinos da região de Tlemcen aí emigrados no tempo colonial francês (Marrocos foi até 1956 um protetorado, a Argélia pôs fim à condição de colónia em 1962).

Ora, no momento da morte de Bouteflika, que chegou a ser membro do Partido Istiqlal marroquino antes de se juntar muito jovem à guerrilha da Frente de Libertação Nacional (essa FLN que combateu vitoriosamente os franceses e até hoje é parte do sistema político argelino), os dois países magrebinos estavam de relações cortadas, deixando estupefactos aqueles que conhecem a proximidade cultural dos dois povos, mesmo conhecendo o historial de conflitos e tensões nas últimas décadas, desde a Guerra das Areias em 1963, até ao apoio de Argel aos independentistas da Polisario desde 1975, passando pelo fecho total de fronteiras em 1994, depois de um atentado terrorista em Marraquexe em que os atacantes tinham origens argelinas.

Não é difícil identificar pontos de atrito recentes entre Marrocos e a Argélia, desde o descontentamento de Argel com o reconhecimento de Israel por Rabat ou as referências do embaixador marroquino na ONU ao separatismo na Cabilia, região de maioria berbere muita avessa à arabização da sociedade argelina. Argel também se queixa de espionagem marroquina com apoio tecnológico israelita.

Mas sendo evidente que o fecho das fronteiras, que dura já há 27 anos, prejudica não só as populações fronteiriças (há casos de aldeias com plantações ou oásis do outro lado) como as próprias economias nacionais (calcula-se que o impacto possa ser de três pontos percentuais do PIB de cada um dos países), o que impede que reabram? E que as relações se restabeleçam?

Como já se viu, há muita proximidade entre os dois países, das línguas à religião, mas também percursos históricos distintos, que podem explicar a desconfiança permanente entre as lideranças de Rabat e Argel.

No século XV e XVI, tanto Marrocos como a Argélia foram atacadas pelas potências ibéricas. Mas pouco depois aconteceu um evento fraturante: a inclusão da Argélia no território do Império Otomano, enquanto Marrocos mantinha a sua independência, mesmo tendo de suportar enclaves portugueses (o último foi Mazagão, abandonado no século XVIII) ou espanhóis (ainda hoje Ceuta e Melilla). No século XIX, novo episódio fraturante: a Argélia passa a ser colónia francesa, enquanto Marrocos mantinha a soberania apesar da cobiça de várias potências. Com o início do século XX, perpetua-se a colonização da Argélia e Marrocos passa a protetorado franco-espanhol.

Liberto dos franceses sem guerra, em 1956, Marrocos afirma-se como monarquia e especialmente sob Hassan II alinha com os Estados Unidos na Guerra Fria. Já a Argélia, que foi através de uma sangrenta guerra que expulsou os colonizadores franceses, nasce como país independente em 1962, com uma república que se assume campeã do terceiro-mundismo e oferece santuário a movimentos e personalidades de esquerda, como o português Manuel Alegre, que viveu em Argel parte do seu exílio por contestar o salazarismo. No contexto do combate ideológico da Guerra Fria, a Argélia, apesar de destacado membro do Movimento dos Não-Alinhados, surge próxima do campo soviético.

A rivalidade entre Marrocos e Argélia, que não se revelou quando entre 1956 e 1962 o novo Marrocos independente apoiou a luta da guerrilha da FLN, parece assim ter raízes históricas, acentuadas pela opção política pós-independência e pela escolha de aliados rivais entre as grandes potências. Também o relacionamento com a antiga potência colonial é totalmente distinto, com Marrocos a contar com a França como protetora na União Europeia e a Argélia a manter abertas feridas da era colonial. Palavras críticas para a Argélia proferidas já em setembro pelo presidente francês Emmanuel Macron levaram Argel a retaliar, proibindo, por exemplo, o sobrevoo do seu território por aviões militares franceses a caminho de missões nos países do Sahel, uma exibição de força do presidente Abdelmadjid Tebboune, jogando com o nacionalismo para ganhar popularidade interna.

Com território e população maiores do que Marrocos, e também com vastos recursos em petróleo e gás natural, a Argélia tem certas vantagens sobre o vizinho, e recentemente até passou a privilegiar o gasoduto que a liga diretamente à Espanha sem passagem por Marrocos. Mas os marroquinos conseguiram construir uma economia muito mais diversificada e contam com uma parceria com a União Europeia que tem ajudado a desenvolver o país. Também a sociedade marroquina, graças ao papel duplo do monarca como líder político e religioso, evitou sempre conflitos internos graves, mesmo na época da democracia musculada de Hassan II, enquanto a Argélia viveu uma década de terrorismo islamita na década de 1990.

No seu discurso do trono, a 31 de julho, Mohammed VI procurou apaziguar as tensões e apelou à reabertura das fronteiras. Falou mesmo de irmãos-gémeos que se completam, referindo-se aos dois países. Mas a resposta argelina foi cética e a 24 de agosto chegou o tal corte de relações, com justificações diversas desde a espionagem ao Sara Ocidental, um grave aprofundamento da tensão, que resta saber se é para durar. Falta construir um terreno de confiança mútua.

Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN