Multiplicar, por todo o país, iniciativas organizadas por grupos, associações, autarquias, escolas e outras instituições ou grupos informais da sociedade civil, suscitando a “participação de todas as pessoas e instituições que o desejarem” para fazer a memória e o luto de quem sofreu ou sofre com a pandemia; e, ao mesmo tempo, afirmar a esperança “no reforço de relações sociais fraternas, justas e portadoras de futuro para todas e todos”, são alguns dos objectivos e propostas da Jornada de Memória, Luto e Afirmação da Esperança que uma centena de cidadãos propôs que seja celebrada no fim-de-semana de 22 a 24 de Outubro próximo.

“O vírus da pandemia que assolou o mundo em 2020-21 está a ser combatido com eficácia pelas medidas sanitárias e pelas vacinas conseguidas em tempo recorde”, começa por notar o texto da declaração inicial, publicado dia 2 de Julho no Público, Jornal de Notícias e 7Margens – jornal digital de religiões e espiritualidades. “O rasto deixado é de desolação: o número dos diretamente afetados caminha para os 180 milhões e, desses, perto de quatro milhões perderam a vida. Estamos perante uma tragédia de proporções avassaladoras”.

A iniciativa começou por ser conversada em pequeno grupo, que depois se foi alargando até constituir uma comissão promotora de uma centena de membros. O Presidente da República associou-se à proposta dando- lhe o seu alto patrocínio. O documento diz que a jornada pretende “dar densidade, rosto, vida e sentido colectivo aos números, estatísticas e gráficos com que todos fomos confrontados desde março de 2020”, prestando tributo, de modo especial, aos que partiram, mas também acolhendo o sofrimento de quem foi afectado “pela pandemia e suas consequências”. Ao mesmo tempo, pretende-se “celebrar e agradecer a todos os que cuidaram da saúde e minoraram o sofrimento e a dor de tantos” e “afirmar a vontade de viver em comunidades que não querem deixar ninguém para trás”. Na declaração inicial, apresentam-se ainda sugestões de iniciativas e formas de as concretizar. Desde logo, propondo “dar corpo a tudo o que a pandemia nos deixa na memória, recorrendo a todas as linguagens expressivas, que não apenas, nem sobretudo, o discurso falado”.

Sinos a tocar, velas nas praças ou nas casas
Uma primeira sugestão é que, num dos dias, os sinos das igrejas toquem ao meio-dia e que as famílias coloquem, à noite, uma vela num espaço público colectivo ou na janela de casa. Instituições religiosas, com os seus rituais próprios, autarquias, escolas, instituições de saúde e de acção social ou protecção civil, bem como actores culturais são também referidos como âmbitos possíveis onde se podem organizar iniciativas. De igual modo, os meios de comunicação social são convidados a tomar iniciativas editoriais e de programação que entendam adequadas para assinalar a proposta.

“As iniciativas deverão ter um carácter aberto, plural e inclusivo, podendo assumir formas como celebrações cívicas, celebrações religiosas/ecuménicas, concentrações, desfiles, vigílias, tempos (minuto) de silêncio, cordões humanos, instalações artísticas, sessões musicais ou performativas (dança, poesia, teatro, murais…)”, sugere ainda o documento. Um site de informação onde se registam todas as iniciativas e propostas sobre o que se pode fazer, está entretanto disponível em www.memoriaeesperanca.pt, onde também se pode ler o documento inicial.

O texto justifica a proposta: “Ao olhar para a fase pós-pandemia na realidade que nos é mais próxima, não podemos esquecer, não podemos fazer tábua-rasa, da experiência traumática que o último ano representou para centenas de milhares de portugueses que viveram e vivem momentos trágicos.” Por isso, acrescenta, é necessário também afirmar a esperança, “conscientes do risco que existe de regresso ao velho normal”: “Esperança por estarmos mais preparados para enfrentarmos juntos os desafios da pós-pandemia e outros que se nos coloquem. Esperança fundada nos actos de solidariedade, dedicação e atenção de que fomos actores e testemunhas ao longo deste longo ‘inverno’.” E também esperança de “não desistir de pensar um outro mundo, de questionar o modelo de sociedade centrado no ter e não no ser”, reconhecendo que “somos todos vulneráveis e interdependentes, que estamos todos no mesmo barco e que reconhecê-lo pode ajudar a superar o medo”.

Fazer o luto
“Fazer o luto é imprescindível”, afirma o texto de apresentação da jornada, que lembra ainda em especial os idosos “que perderam a vida ou a lucidez”. Os gestos colectivos ajudam “a curar as feridas e a seguir em frente” e o luto comunitário é igualmente importante: há uma dimensão “comunitária do luto que não resulta apenas do somatório dos lutos individuais ou familiares” e que “precisa de ser feito, porque a tragédia que eclodiu e o trauma que ela originou são sociais e globais”.

O documento recorda: “O rasto deixado é de desolação: o número dos directamente afectados caminha para os 180 milhões e, desses, perto de quatro milhões perderam a vida. Estamos perante uma tragédia de proporções avassaladoras.” Em Portugal, recorda ainda o texto, há já mais de 900 mil pessoas contagiadas (muitas das quais passaram por situações desesperadas de que estão ainda a recuperar física e psiquicamente) e mais de 17 mil vítimas mortais.

“Grande parte sofreu sozinha, morreu longe dos seus e sem possibilidade de um último adeus. Não podemos esquecer os seus familiares e amigos, sobretudo os que não puderam acompanhar e despedir-se dos doentes hospitalizados ou institucionalizados, e de todos aqueles que nem sequer puderam fazer-lhes o funeral”.

Apesar disso, e dos desafios que ainda há pela frente em âmbitos como a saúde e a economia, “a amplitude da tragédia estará atenuada nos países mais ricos, que controlam a produção e o acesso às vacinas”. No entanto, “os entraves à libertação das patentes e a falta de solidariedade internacional fazem com que uma grande parte da humanidade, sobretudo dos países do hemisfério sul, continue a sofrer e a morrer de forma dramática com a covid-19”. Por isso, o documento recorda o que tem sido repetido por instituições como a Organização Mundial de Saúde ou personalidades como o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, ou o Papa Francisco: “Só estaremos seguros contra a covid-19 quando, a nível do planeta, todos estiverem seguros”.

Até ao esgotamento
O documento lembra ainda “as várias categorias de profissionais que trabalharam até ao esgotamento nas linhas da frente, bem como outros profissionais que, em outras frentes, permitiram que o país funcionasse”. E também os que morreram “não devido à covid-19, mas à fragilidade dos serviços de saúde que deixaram de poder atender a outras doenças graves”.

Na lista do grupo promotor, incluem-se nomes como os das escritoras Alice Vieira, Leonor Xavier e Lídia Jorge; os humoristas Bruno Nogueira, Joana Marques e Maria Rueff; músicos (Pedro Abrunhosa e Rui Veloso); ex-ministros (Vera Jardim e Poiares Maduro); jornalistas (Adelino Gomes, Adriano Miranda, Francisco José Viegas, Maria João Avillez e Paula Moura Pinheiro).

Há também várias pessoas oriundas de diferentes comunidades religiosas: António Calaím (Aliança Evangélica), Esther Mucznik e Isaac Assor (Comunidade Judaica), Fernando Ventura, Pedro Vaz Patto e Peter Stilwell (Igreja Católica), Jorge Pina Cabral (Igreja Lusitana), Khalid Jamal e Mahomed Iqbal (Comunidade Islâmica), Paulo Borges (União Budista) e Silas de Oliveira (Igreja Presbiteriana). A lista inclui ainda personalidades como Adel Sidarus, Álvaro Laborinho Lúcio, Daniel Sampaio, Deolinda Machado, Eugénio da Fonseca, Isabel Capeloa Gil, José Mattoso, Pedro Bacelar de Vasconcelos e Rui Vieira Nery.

Texto: António Marujo, jornalista do setemargens.com e um dos subscritores da proposta da jornada; o autor escreve segundo a anterior norma ortográfica