Abdul Hamid Dbeibah, um engenheiro formado no Canadá que nos tempos finais do regime de Muammar Kadhafi fez fortuna na construção civil, lidera desde fevereiro de 2021 o governo de unidade nacional destinado a tirar a Líbia da guerra civil que se seguiu ao derrube do ditador há uma década. Dbeibah, baseado em Trípoli e que conta com o reconhecimento das Nações Unidas, beneficia de um acordo que, em teoria, reunifica o país, pois o general Khalifa Haftar, que a partir de Benghazi controla a metade oriental, aceitou participar neste esforço de pacificação, o mais recente de uma longa série que foi acumulando fracassos sucessivos.

Com apenas sete milhões de habitantes para uma área 20 vezes o tamanho de Portugal, a Líbia tem vastos recursos petrolíferos (nona reserva mundial), o que ajuda a explicar como Kadhafi, um coronel que em 1969 derrubou a monarquia, se manteve no poder até 2011, apesar de durante décadas apoiar o terrorismo internacional, dos grupos palestinianos ao IRA norte-irlandês. A onda de revoltas populares iniciada em dezembro de 2010 na Tunísia e denominada Primavera Árabe alastrou a vários países do Norte de África e do Médio Oriente e a Líbia não foi exceção, com Kadhafi a enfrentar uma rebelião armada lançada a partir de Benghazi, a maior cidade da Cirenaica, tradicional concorrente de Trípoli, capital da província da Tripolitânia e do país.

Respaldada por um raro mandato do Conselho de Segurança das Nações Unidas (Rússia e China não usaram o seu direito de veto), a NATO interveio a partir de março de 2011 contra o exército de Kadhafi. O mandato inicial da ONU restringia-se a proteger as populações da ofensiva governamental contra os rebeldes, mas os ataques da NATO acabaram por inverter o curso
do conflito. Em agosto, o próprio palácio/quartel onde o líder líbio vivia em Trípoli foi atacado e em setembro
a União Africana reconheceu o Conselho
Nacional de Transição, a cúpula rebelde,
como a nova autoridade do país.

Kadhafi acaba por ser capturado perto
de Sirte, a sua cidade natal, e morto a 20 de outubro. As esperanças dos círculos kadhafistas de um volte-face desaparecem em dezembro de 2011 quando Saif al-Islam, o filho visto como herdeiro político, também se deixa capturar. Em poucos meses, uma ditadura que durava há quatro décadas e que tinha conseguido um índice de desenvolvimento humano sem par em África passava a mera memória histórica.

Apesar de até realizar eleições, a nova Líbia deixou-se envolver numa complexa guerra civil, com vários lados a procurarem o controlo do país e sobretudo das suas riquezas.
A produção de petróleo caiu para 500 mil barris por dia, em vez dos dois milhões que chegou a ter em tempos de paz, mas mesmo assim explica muitos dos jogos de aliança entre políticos e as várias milícias locais, uma das mais famosas sendo a de Misrata. Num dado momento, até o Estado Islâmico, o grupo jihadista que controlou vastas áreas da Síria e do Iraque, conseguiu ter uma célula terrorista na Líbia, atacando sobretudo cristãos egípcios que integravam as fileiras de imigrantes qualificados que tradicionalmente faziam o país funcionar.

Para complicar a vida aos líbios, várias potências decidiram tentar influenciar o desfecho da guerra civil. Antes deste acordo, o Qatar e a Turquia, mas também o grosso dos países da União Europeia apoiavam o governo reconhecido pela ONU, enquanto o lado liderado pelo general Haftar congregava a simpatia dos Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e do Egito, além da Rússia.
A Itália manteve contactos com Haftar, acreditando que o cerco deste a Trípoli em 2020 iria resolver o impasse na guerra civil e era melhor criar entendimentos com o antigo aliado de Kadhafi que depois se tornou um dos seus maiores inimigos e teve de exilar-se para salvar a vida.

Uma das grandes preocupações da Itália com a Líbia é a migração. Milhares de migrantes vindos sobretudo da África Subsariana usam a costa líbia como ponte de partida para cruzar o Mediterrâneo e atingir a Europa, vista como um eldorado. A pequena ilha italiana de Lampedusa, a meio caminho entre o extremo ocidental líbio e a Sicília, é um dos destinos preferidos das máfias que fazem fortuna com estas gentes desesperadas por uma vida melhor. Na Líbia, onde chegam a ficar retidos meses, estes migrantes sofrem maus–tratos e até há casos de escravatura. E mesmo quando chegam a ter a oportunidade de cruzar o mar, muitos perdem a vida em naufrágios que nem sequer chegam a ser conhecidos.

Combater o extremismo islâmico e travar a migração ilegal são duas das grandes razões que explicam o interesse global em ver a Líbia pacificada. Uma terceira razão é a riqueza petrolífera, pois a proximidade com a Europa traz vantagens à compra de petróleo líbio, mesmo que hoje a produção diária ronde apenas
o meio milhão de barris.

A paz precisa do entendimento entre os líbios mas também o fim do envolvimento estrangeiro. Sabe-se que mercenários de origens diversas têm lutado nas fileiras de Haftar, mas também que combatentes sírios vieram com os turcos lutar em nome do governo de unidade reconhecido pela comunidade internacional.

Contudo, novas tensões parecem estar sempre a surgir, como agora a delimitação territorial e zonas económicas exclusivas de águas entre a Líbia e países como a Turquia e a Grécia, que tem dado azo a múltiplas trocas de visitas de governantes e a declarações tranquilizadoras mas por vezes contraditórias.

Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN