Francisco continua o diálogo com as autoridades chinesas para dar nova vida ao catolicismo na China, mas na capital, uma igreja com quase 400 anos, e que nasceu ligada a Portugal, testemunha a determinação dos crentes
Francisco continua o diálogo com as autoridades chinesas para dar nova vida ao catolicismo na China, mas na capital, uma igreja com quase 400 anos, e que nasceu ligada a Portugal, testemunha a determinação dos crentesQuem caminha por Wangfujing, uma das principais ruas de Pequim, cruza-se com uma mistura de modernos centros comerciais, restaurantes de “fast food” ocidentais, lojas de recordações e até um mercado tradicional chinês, daqueles onde se vendem espetadas de escorpião. Mas é quando a famosa rua deixa de ser pedonal, no cruzamento com a Dong’anmen, e os turistas já não se aventuram muito, que surge a Igreja de São José, datada do século XVII e considerada o segundo mais antigo local de culto católico da capital chinesa, depois da Catedral da Imaculada Conceição, também conhecida como Igreja de Xuanwumen. as velhas pedras da Igreja de São José impõem respeito, até porque assistiram a muitos acontecimentos da história chinesa dos últimos 400 anos, boa parte relacionados com uma complexa relação do antigo Império do Meio com as potências ocidentais. Construída originalmente em 1655, nos primeiros anos da dinastia Qing, a igreja deve a sua atual arquitetura a uma reconstrução datada de 1905, em vésperas do fim do império, que aconteceu em 1912, com a abdicação de Pu Yi. Este último é a figura central do célebre filme “O Último Imperador” do realizador italiano Bernardo Bertolucci. Na entrada da igreja, um cartaz anuncia haver missas em chinês e inglês. Lá dentro a decoração recorda a de uma qualquer igreja católica da Europa. Uma lojinha de produtos religiosos vende crucifixos, medalhas com as imagens de Jesus ou Maria. Pergunto se tem alguma Nossa Senhora de Fátima. a comunicação está complicada, mesmo recorrendo ao inglês, a língua franca dos nossos tempos. Mas alguma compreensão acontece, pois a senhora chinesa indica uma prateleira envidraçada onde no canto superior esquerdo há uma representação da Senhora de Fátima a ser adorada pelos três pastorinhos, uma imagem inconfundível para um português. Na igreja, sentados a rezar, está no máximo uma dúzia de crentes. E são quase só mulheres. Não é possível saber se representam bem o que é hoje a comunidade católica na China, pois esta, além de dividida entre seguidores da corrente oficial governamental e a corrente clandestina fiel ao Vaticano, também pode valer muito mais do que os 10 milhões de que habitualmente se fala. Em curso, entretanto, está um esforço de diálogo entre o Vaticano e o governo de Pequim, já assumido por ambas as partes. ainda há semanas o Papa declarou que iam no bom caminho as negociações com as autoridades comunistas chinesas, sendo que Francisco está a ser criticado por sectores conservadores da Igreja por eventuais cedências a Pequim. Uma das vozes mais críticas tem sido o cardeal emérito de Hong Kong, Joseph Zen, que é contra o Vaticano vir a reconhecer os bispos nomeados pelo governo. São casos raros os de bispos chineses hoje aceites tanto pelo Papa como pelo Estado, mas um deles é o de Pequim, Joseph Lin Shan, que foi pároco na Igreja de Wangfujing. País de 1. 400 milhões de habitantes oficialmente ateu, a China abandonou depois da morte de Mao Tsé-tung em 1976 a política de hostilidade às religiões, desde que a supremacia do Partido Comunista não seja posta em causa.com as religiões tradicionais chinesas a serem ainda as mais populares, seguidas do Budismo, tanto o Cristianismo como o Islão são ultraminoritários, mas nem por isso menos vigiados. Dos cristãos, sejam católicos ou protestantes, teme-se a influência das ideias do Ocidente, dos muçulmanos que sejam contaminados por correntes extremistas. as negociações entre Francisco e o país liderado por Xi Jinping, Presidente da República e secretário-geral do partido, podem ter resultados históricos, pois desde a proclamação por Mao, em 1949, da República Popular não existem relações oficiais. O Vaticano reconhece a República da China, baseada em Taiwan, a ilha onde se refugiaram os nacionalistas de Chiang Kai-shek, depois da derrota frente aos comunistas na guerra civil chinesa. Um dos sinais de aproximação entre o Vaticano e Pequim ocorreu durante a visita de Francisco à Coreia do Sul em 2014, um ano depois do início do pontificado do Papa nascido na argentina. ao contrário do que acontecera quando João Paulo II foi a Seul, o avião que levava Francisco até à capital sul-coreana foi autorizado a sobrevoar a China, uma decisão cheia de simbolismo. É antiga esta relação do Vaticano com a China. Mesmo nos tempos medievais chegou a haver contactos, e um português, Frei Lourenço de Portugal, foi nomeado pelo Papa Inocêncio IV como enviado à corte mongol, não chegando porém a partir. Pouco depois, quando os descendentes de Gengis Khan fundaram a dinastia Yuan na China, em 1276, a política de tolerância religiosa dos mongóis permitiu não só o culto cristão como alimentou esperanças no Ocidente de uma aliança contra o Islão. E na passagem dos séculos XIII para o XIV, João de Montecorvino tornou-se mesmo o primeiro bispo de Pequim. Mais tarde, já com os Ming, dinastia chinesa, no poder, foi por via marítima que o Cristianismo voltou a surgir com força no Império do Meio. Em 1557, Portugal instala-se em Macau e a partir daí, sobretudo os jesuítas vão ter um papel na tentativa de evangelização da China. Já antes São Francisco Xavier morrera no projeto, mas vai ter sucessores famosos como Matteo Ricci, italiano que estuda a língua chinesa para melhor transmitir a doutrina cristã. É neste contexto, embora perturbado pela substituição dos Ming pelos Qing (dinastia manchu, vinda de além da Muralha da China como antes os mongóis), que surge a fundação da Igreja de São José em Wangfujing. Uma placa na entrada recorda que ali começou por ser autorizada em 1653 a residência de dois padres jesuítas, o italiano Ludovico Buglio e o português Gabriel de Magalhães. Dois anos depois, com permissão do imperador Shunzi, começa a construção da igreja. ao longo dos séculos esta, tal como a China, conhece uma história tumultuosa, sendo destruída por um terremoto em 1720, depois em 1807, demolida por ordem imperial, e em 1900 atacada pelo revoltosos boxer que contestavam a colonização não oficial do país. É no seguimento dessa nova destruição que surge a atual versão da Igreja de São José. Durante a Revolução Cultural de 1966-1976, a igreja é fechada mas permanece intacta. Reabilitada depois, quando Deng Xiaoping assumiu o poder e embora respeitando a memória de Mao decidiu reformar o país, o governo chinês reconhece hoje o seu valor monumental. Quem sabe, se Francisco conseguir mesmo um acordo com a China, se a Igreja de São José não estará incluída no percurso de uma eventual visita papal que seria histórica. *jornalista do Diário de Notícias