a apatridia afeta mais de 10 milhões de pessoas em todo o mundo. São homens, mulheres e crianças sem nacionalidade, que não têm acesso aos serviços de saúde e educação, estão privados do direito à propriedade ou de se movimentarem livremente entre países
a apatridia afeta mais de 10 milhões de pessoas em todo o mundo. São homens, mulheres e crianças sem nacionalidade, que não têm acesso aos serviços de saúde e educação, estão privados do direito à propriedade ou de se movimentarem livremente entre paísesOlga Khutsishvili, 19 anos, vive com a mãe e o filho na modesta vila de Dzegvi, na Geórgia. Hoje, é uma cidadã georgiana de pleno direito. Mas nem sempre foi assim. até há poucos meses, fazia parte do grupo de mais de 10 milhões de pessoas que são consideradas apátridas. Era como se não existisse para o Estado. Sem acesso aos documentos de identificação, estava privada também de frequentar a escola ou de aceder aos serviços de saúde. Não sabia ler nem escrever, e todos se riam de mim. Não consigo pensar nesses anos sem chorar, contou a jovem à equipa do alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (aCNUR). O drama de Olga começou a desenhar-se em 1980, com o casamento dos pais. a mãe, de origem russa, perdeu os documentos e, por isso, nunca conseguiu oficializar o matrimónio, embora o marido fosse um cidadão da Geórgia. Conclusão: quando Olga nasceu, ninguém aceitou passar a certidão de nascimento que provasse a sua nacionalidade, o que a obrigou a aprender a viver sem acesso a muitos dos direitos que a maioria das pessoas têm garantidos. a sua situação tornou-se ainda mais dolorosa em meados de 2013, quando a jovem se confrontou com o mesmo problema dos pais. arranjou marido, mas sem a possibilidade de tirar uma certidão de casamento, não pode registar o seu bebé, por falta de documentos. O caso de Olga só não se arrastou por várias gerações porque chegou ao conhecimento de uma equipa do aCNUR em trabalho na Geórgia, que a ajudou a reunir documentação e a requerer a cidadania. Isto significa muito para mim, não sou mais apátrida, posso ir ao médico, levar o meu bebé e desfrutar dos mesmos direitos que qualquer outro cidadão do país, afirmou a jovem, em janeiro, depois de receber o primeiro documento de identificação da sua vida. a apatridia refere-se à condição de um indivíduo que não é considerado como um nacional por nenhum Estado e ocorre por uma variedade de razões, incluindo a discriminação contra minorias, a falha em incluir todos os residentes do país no corpo de cidadãos quando um Estado se torna independente, e os conflitos de leis entre Estados. Embora não existam números exatos, estima-se que haja mais de 10 milhões de apátridas, em dezenas de países desenvolvidos e em desenvolvimento, em muitos casos devido às políticas discriminatórias. No Médio Oriente, em vários países do Golfo, as populações que ficaram à margem dos processos de independência foram privadas de nacionalidade, como aconteceu com os curdos failis, no Iraque, durante o regime de Saddam Hussein. Em África, parte da população núbia localizada no Quénia não usufrui de direitos de cidadania. E do outro lado do continente, na Costa do Marfim, a falta de clareza na sua posição nacional afeta um grande número de pessoas. Na Europa, a dissolução da União Soviética e da Federação Jugoslava nos anos 1990 levou à apatridia nos novos países que surgiram. O problema da sucessão de Estados foi agravado em ambos os casos pela presença de fluxos massivos de deslocados e refugiados. Os esforços para naturalizar essas pessoas e para expedir documentos de nacionalidade estão em progresso, mas a situação ainda não está completamente resolvida, segundo informações dos serviços do aCNUR. Nos últimos anos, algumas campanhas na Ásia têm permitido que milhões de pessoas recebam a sua nacionalidade no Bangladesh e no Nepal, mas apesar do Nepal ter alcançado em 2007 a maior redução de apatridia a nível mundial, a nação Himalaia ainda abriga cerca de 800 mil pessoas cuja nacionalidade não é confirmada. Campanha internacionalDada a seriedade deste problema, em 1954 a ONU adotou a Convenção Sobre o Estatuto dos apátridas. Mais tarde, em 1961, foi publicada a Convenção para Redução dos Casos de apatridia, acordos que o aCNUR, liderado pelo ex-primeiro-ministro português, antónio Guterres, tem tentado levar os Estados a ratificar e implementar, tendo em conta que a apatridia pode ser evitada através da legislação de nacionalidade adequada ou de procedimentos como o registo de nascimento universal. Mas, até hoje, apenas 75 países são signatários da Convenção de 1954, e só 37 assinaram a Convenção de 1961. Este cenário comprova que certas questões relacionadas com a apatridia permanecem politicamente controversas em alguns países, enquanto noutros, para acabar com ela bastaria mudar algumas palavras nas leis de cidadania. Durante a última década, as mudanças legislativas e políticas permitiram que mais de quatro milhões de pessoas apátridas adquirissem uma nacionalidade ou mesmo tivessem a sua nacionalidade reconhecida. Porém, apesar de todos estes esforços continua a nascer um bebé sem nacionalidade a cada dez minutos, em todo o mundo. a agência das Nações Unidas para os refugiados iniciou o ano passado uma campanha para erradicar a apatridia e acabar com o limbo jurídico em que vivem milhões de pessoas que não têm nacionalidade reconhecida por nenhum país e vivem sem garantias de seus direitos humanos. Lançada no âmbito das comemorações do 60º aniversário da Convenção de 1954, a iniciativa #Ibelong (Eu pertenço, na tradução livre para português) pretende envolver não só os agentes políticos, mas também a socidedade civil, pois um dos objetivos é reunir 10 milhões de assinaturas numa espécie de carta aberta que servirá para demonstrar o apoio popular ao fim da apatridia. Nesta missiva, antónio Guterres explica que ser apátrida significa ter uma vida sem acesso à educação e a serviços de saúde, e mesmo sem um trabalho legalmente reconhecido. É uma vida sem a possibilidade de transitar livremente, sem perspetivas ou esperança. a apatridia é desumana e nós acreditamos que é hora de acabar com essa injustiça, conclui o alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados.