Na Libéria, o ébola destruiu o sentido de humanidade. «Nem um abraço se pode dar a quem precisa de conforto», conta-nos Maria Teresa Moser, missionária da Consolata que está no epicentro do pior surto de ébola na África Ocidental
Na Libéria, o ébola destruiu o sentido de humanidade. «Nem um abraço se pode dar a quem precisa de conforto», conta-nos Maria Teresa Moser, missionária da Consolata que está no epicentro do pior surto de ébola na África OcidentalO sofrimento que o povo da Libéria está a passar vai muito para além das nossas palavras. Desde que o país foi declarado em estado de emergência, fecharam muitos dos serviços públicos, escolas, lojas, fábricas, os famosos mercados, e até organizações não governamentais. Os investidores abandonaram o território, deixando os funcionários sem trabalho e sem salário, e os que trabalhavam no campo deixaram de plantar, por causa do Ébola. a maior parte das famílias não consegue colocar na mesa uma refeição por dia e a esperança é cada vez mais vencida pela fome e pela raiva. É neste cenário, por vezes de terror, que nós, as oito missionárias da Consolata que atualmente estamos na zona de Harbel, nos movimentamos nos últimos meses. as nossas mãos cheiram a desinfetante, pois temos que as lavar continuamente. Tudo o que entra em casa não pode ser tocado antes de ser purificado com a mistura de água e antiséptico. É proibido tocar ou saudar as pessoas com a mão e temos que evitar a aproximação em demasia, mesmo a quem aparenta ser saudável. Na área onde vivemos, estamos a trabalhar com um grupo de 25 voluntários, que todos os dias anda de casa em casa a distribuir alimentos aos órfãos e às pessoas mais necessitadas e a dar conselhos para prevenir a doença. Depois da oração da manhã, partimos com as botas nos pés, mangas compridas (apesar do calor), luvas e desinfetante para fazer uma demonstração. algumas pessoas ficam felizes por nos receber, mas há quem esteja tão magoado que não quer ouvir nada. Dizem-nos, em forma de desabafo: agora que todos da minha família morreram, a mensagem que trazem chegou atrasada. ao fim de um dia de trabalho, que pode levar 12 horas, estamos cansadas, com dores nas pernas, de tanto caminhar sem poder sentar, mas muito alegres e prontas para iniciar uma nova missão, no dia seguinte. Temos consciência dos riscos que corremos, mas a nossa presença e a própria vida, doada no meio do povo sofredor, são testemunhos do amor que temos pelo Reino de Jesus. Nas deslocações, vamos encontrando pessoas doentes que deviam ir para a quarentena, mas o Estado não tem espaço para elas.com os transportes sanitários é outro problema. Só há uma ambulância disponível para uma grande área e quando se chama o agente oficial de saúde do distrito, leva um a dois dias a chegar junto da pessoa doente. Porém, quando se acionam os serviços funerários, para enterrar alguém que morreu, somos atendidas de imediato. Soubemos depois que recebem 150 dólares (cerca de 120 euros) por cada enterro. Outro grande problema que temos enfrentado são os órfãos de pais vítimas de Ébola. a população foge deles com medo de contrair o vírus e não conseguem nem comprar o sal de que precisam para a comida, pois a comunidade tem receio de aceitar o seu dinheiro. atualmente, acompanhamos 63 menores sem pais, somente na nossa região, mas a lista vai aumentando de dia para dia. O que sentimos, em geral, é que todos têm terror ao vírus. E muitos preferem não acreditar na sua existência, passando ao lado da prevenção. aqui bem perto da nossa casa, por exemplo, faleceu recentemente uma senhora que fazia rezas tradicionais. Durante uma oração, ela colocou as mãos sobre um homem infetado e contraiu a doença, acabando por morrer. Duas semanas depois, faleceu a irmã, uma criança e várias outras pessoas, mas a rezadeira’ sempre negou estar com Ébola. De facto, esta peste é como os fios descobertos de uma linha de alta tensão: quem tocar neles, fica preso de imediato. ainda assim, muitos continuam a negar a existência da epidemia, quando poderiam salvar-se. Os últimos dados divulgados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), relativos a meados de novembro, apontavam para um total de 2812 mortos na Libéria. Infelizmente, a quantidade de vítimas é muito maior, porque no início a população enterrava os mortos às escondidas, com medo que as autoridades levassem o corpo, sem se poder prestar as últimas homenagens ao falecido. É tradição lavar o corpo do morto, saudá-lo e tocá-lo com afeição. Mas o hábito de unir as famílias em momentos de dor, tristeza e morte, para o mútuo conforto e consolação, já não existe. Inevitavelmente, o povo está até a perder o sentido mais comum da humanidade, pois esta epidemia desaconselha a prática de um gesto gentil e humano, como o de abraçar alguém que chora e que sofre.