«é preciso evidenciar que a pobreza não é uma coisa inócua, mas é criada, é calculada por um sistema, como por exemplo o sistema capitalista, ou o sistema marxista-socialista»
«é preciso evidenciar que a pobreza não é uma coisa inócua, mas é criada, é calculada por um sistema, como por exemplo o sistema capitalista, ou o sistema marxista-socialista» a poucos meses da abertura oficial do ano da Vida Consagrada, o cardeal João Braz de aviz antecipou à Fátima Missionária algumas das metas traçadas pela Igreja para esta comemoração. Num tom descontraído, abordou ainda a questão do celibato, do pecado social, das mudanças no Vaticano e da importância da teologia da libertaçãoFátima Missionária Em 2015 celebra-se o ano da Vida Consagrada. Que frutos esperam colher com esta iniciativa? João Braz de aviz a vida consagrada é uma parte muito importante na Igreja, porque se trata de todos os consagrados, isto é, os que têm votos de pobreza, castidade e obediência, sejam eremitas, monges, frades, freiras, irmãs, ou os membros dos institutos seculares que não formam uma congregação, mas que se consagram a Deus no mundo. E dar importância a todo este mundo era uma coisa que nós sentíamos como muito importante. Traçámos como objetivo não ficar remoendo tanto os problemas, mas olhar o passado com verdadeira gratidão, porque Deus deu à Igreja uma multiplicidade de carismas, de dons, de congregações, de ordens – são mais de duas mil só de direito pontifício e mais de um milhão e meio de consagrados no mundo. Então, queremos olhar o futuro com esperança e viver o presente com paixão. FM Quando começam as atividades? JB a a sessão de abertura está prevista para o dia 30 de novembro deste ano e a de encerramento para fevereiro de 2016. Durante este período, vamos promover vários encontros. Queremos reunir as pessoas ligadas à formação da vida consagrada de todo o mundo, num encontro particular. Juntar os religiosos e religiosas, e promover um contacto direto com a vida consagrada contemplativa. No final, vamos ter um momento de encontro de todas essas vocações. ao mesmo tempo, estamos a rever alguns documentos relacionados com a vida consagrada, como por exemplo a relação entre superiores maiores e bispos, o documento sobre os irmãos leigos e o documento sobre a vida contemplativa, que é de 1950. FM Que mudanças poderão surgir? JB a Na vida contemplativa, queremos estudar sobretudo a clausura papal, a autonomia dos mosteiros e a questão da formação. Mais do que mudanças, queremos aprofundar o espírito do decreto Perfectae Caritatis [sobre a renovação da vida religiosa], porque a motivação do ano da Vida Consagrada assenta nos 50 anos desse documento. Portanto, as novidades que surgirão serão de vida mais intensa do próprio carisma. FM Todos os anos cerca de 3. 000 consagrados deixam a vida religiosa. Há algum motivo especial para este índice de abandonos? JB a Muitas vezes são pessoas que não se adaptaram, depois de anos e anos de vida consagrada. Outras estão relacionadas com problemas particulares, e há ainda os casos das desilusões pelo testemunho das comunidades, ou porque a pessoa sente que não se vive o carisma. Ou seja, significa que estamos no momento de voltar aos fundadores. Não é tanto administrar obras ou cuidar de estruturas pesadas que foram criadas durante os séculos, mas entrar profundamente no espírito do fundador, verificar se a vida do Evangelho é a nossa vida e escutar de perto a cultura atual, porque Deus vai falando nos vários momentos da história. E aqui entra uma questão muito importante, que é a vida comunitária: temos que acentuar a espiritualidade de comunhão. FM O celibato é um dos fatores que pode contribuir para alguns destes afastamentos? JB a O celibato não é um mandamento de Deus, é um conselho evangélico, portanto um convite do Senhor para uma vida que se quer perfeita. Para os consagrados, o celibato é fundamental, porque uma vida de consagração é celibatária. O que pensamos hoje é que tem que haver uma maturidade maior em toda a questão da afetividade e da sexualidade. Não podemos viver do não conhecimento, ou de informações erradas, ou de problemas mal resolvidos dentro de nós. Se eu assumo o celibato, não é porque fujo de uma realidade da minha afetividade ou da minha sexualidade. Tenho que enfrentar essa consagração com a profundidade que isso deve ter também na maturidade humana, e quando isso acontece é mais fácil. FM O Papa Francisco tem pedido à Igreja que saia mais para a periferia. Os consagrados já fazem isso ou ainda estão muito absorvidos na obra construída? JB a Hoje, a Igreja tende a ser toda missionária, mas durante muito tempo foram os religiosos que partiram em missão para lugares distantes e difíceis. acho que essa vida já existe. O aprofundamento deve ser sobretudo no espírito; temos que levar um testemunho claro de Jesus Cristo, não somos conservadores de obras e de estruturas, também não temos que formar multinacionais religiosas, temos que ter a nossa vida focada no que é mais importante, que é o testemunho da fé e do Evangelho. FM Tem dito que sente uma vida diferente na Igreja com o novo pontificado. O que é que mudou? JB a Eu moro com a janela virada para a Praça de São Pedro, observo todo o movimento às quartas-feiras e aos domingos, nessas grandes presenças com o Papa. É impressionante como a praça tem sido presença dos jovens, das crianças e das pessoas de um modo geral. E a linguagem coerente que o Papa usa, muito simples e próxima do povo. Na Cúria Romana sentimos que as coisas se estão a simplificar, as estruturas estão menos pesadas e há um bem–querer da população em relação ao Papa, o que significa que ele tem esse canal de entendimento com o povo. É um homem profundamente coerente e respeitado. acho que o Papa trouxe uma vitalidade muito grande à Igreja. FM Mas há especialistas que dizem que será muito difícil mudar a Cúria Romana. JB a Não, as mudanças já estão a acontecer. Se pensarmos por exemplo no Instituto para as Obras da Religião [o chamado Banco do Vaticano], o que estamos vendo é uma mudança muito grande, seja no trato com a instituição, seja no modo de administrar as coisas. O Papa segue de perto todos os dicastérios e quem trabalha no Vaticano. Há uma vontade grande dessa reforma, não só do Papa, mas da Cúria também. Só que essa reestruturação é também das cúrias de bispos e das cúrias das congregações religiosas. É um momento em que precisamos purificar muita coisa, voltar ao Evangelho em muita coisa e deixar de lado o que não serve ao Evangelho. FM Tem-se falado muito da teologia da libertação na Igreja. Que sentido tem esse movimento nos dias de hoje? JB a O que aconteceu com a teologia da libertação, pelo menos em algumas áreas, foi que entrou numa ideologia que não é a favor do Evangelho – a ideologia marxista, ou o instrumento da ideologia marxista – sobretudo na questão do método. Depois de João Paulo II fazer a correção do método, o que sobrou? Sobrou o problema real, que a teologia da libertação acentuou muito, que é a questão dos pobres e da miséria, e que não é apenas uma questão de natureza pessoal, mas das estruturas de pecado que mantêm essa situação e que precisam ser removidas. Há um pecado social que precisa ser removido, sem a gente pensar que não existe um pecado pessoal. É preciso evidenciar que a pobreza não é uma coisa inócua, mas é criada, é calculada por um sistema, como por exemplo o sistema capitalista, ou o sistema marxista-socialista. Então, quando se tira Deus da experiência humana, não sei se sobra a possibilidade de se realizar uma justiça verdadeira.