De visita a Portugal, o Superior Geral do Instituto Missionário da Consolata (IMC), Stefano Camerlengo, explicou as mudanças na estratégia pastoral da instituição e traçou o perfil do missionário ideal
De visita a Portugal, o Superior Geral do Instituto Missionário da Consolata (IMC), Stefano Camerlengo, explicou as mudanças na estratégia pastoral da instituição e traçou o perfil do missionário idealFátima Missionária Tem apelado a uma nova forma de trabalho missionário: o inter gentes’, como complemento do ad gentes’. Esse é o caminho do futuro? Stefano Camerlengo até hoje definimo-nos sempre como missionários ad gentes’, mas ultimamente houve uma mudança. Porquê? Porque o ad gentes’ implica que alguém tem uma verdade e a leva aos outros. E o inter gentes’ pressupõe que neste novo mundo, nesta nova sociedade se dê o encontro de verdades diversas, ou melhor dizendo, de culturas diversas, na procura conjunta da verdade. Isto parece-me fundamental. E nós não estamos habituados, porque nos sentimos mestres, quando seria preciso que nos tornássemos discípulos, alunos de uma verdade que é maior do que nós e que só podemos encontrar na procura feita em conjunto, tendo sempre presente, como cristãos, que o Evangelho de Jesus Cristo é o nosso ponto de referência. a Europa está a passar por uma situação complicada e as famílias enfrentam cada vez mais dificuldades. Os missionários estão preparados para acompanhar esta realidade? Certamente que essa é a grande dificuldade. Objetivamente, estamos a aprender a ser novamente missionários aqui, porque antes, o missionário europeu era o que partia para fora. Ser missionário na Europa é difícil, porque mudou a sociedade, mudou o mundo. E nós estamos a preparar-nos para isso. De que forma? antes de mais com os jovens missionários. Estamos a ensiná-los a viver no velho continente, a aprender as dinâmicas europeias, procurando envolvê-los no apoio concreto aos pobres, aos marginalizados. Enquanto isso, o Instituto Missionário da Consolata (IMC) procura desenvolver uma nova linha estratégica, que passa pela questão da continentalidade. Em que fase está o projeto? a continentalidade neste momento é sobretudo um espírito que se quer transmitir à missão. Significa contextualizar o próprio empenho missionário no continente em que cada um se encontra. antes, dava-se muita importância à universalidade. Hoje, vemos que para ser universal é preciso ter as raízes em algum lugar. Por isso, a continentalidade significa trabalhar num país concreto, com o espírito do continente, olhando para aquilo que se vive nesse continente. Certamente que isso vai levar-nos a uma mudança radical da organização do Instituto.como espera concretizar essas mudanças num Instituto envelhecido, onde a maioria dos jovens missionários é oriunda de países africanos, portanto, com uma cultura e mentalidade diferentes? Esse é o grande desafio que nos espera para o futuro. Mas antes, é preciso que alguém tenha as ideias claras, que se saiba para onde estamos a caminhar. Senão, estamos perdidos. Depois será preciso criar a mentalidade do acolhimento daquilo que é novidade. Há que ter a paciência de dialogar com todos, para depois chegar a uma decisão. E decidir, mesmo que nem todos estejam de acordo. Porque se ficamos só na ideia e não fazemos nada de concreto, não vamos lá. Depois de mais uma visita a Portugal, que imagem leva da Província portuguesa do IMC? a Província de Portugal, antes de mais, parece-me muito viva, apesar de ser daquelas que têm os membros mais idosos do Instituto. Há vontade de trabalhar. E estão a valorizar muito as pessoas idosas. Isso é uma riqueza porque têm uma bagagem enorme de conhecimentos, de sabedoria, de experiências. Por outro lado, é uma Província desta Europa difícil. Fazem-se muitas atividades, mas que tocam só um pequeno grupo da população. Teremos de encontrar estratégias para tocar mais pessoas. O esforço é muito para obter um pequeno resultado. a Província portuguesa tem apostado muito no trabalho dos leigos. Que importância podem ter no futuro do Instituto e no da Igreja em geral? Trabalhar com os leigos, valer-se dos leigos, viver com os leigos é a estrada do futuro. Ninguém duvida disso. O que é preciso, antes de mais, é criar uma nova mentalidade. Nós, religiosos, temos a mentalidade de que tudo deve passar por nós, que nós é que somos bons. É preciso mudar esta mentalidade e não é fácil. a segunda coisa é procurar trabalhar com os leigos e deixar-lhes a sua quota-parte de responsabilidade, sobretudo no seu profissionalismo. Creio que o futuro pede um trabalho conjunto. Não há outra solução. Mas é preciso criar nos missionários essa mentalidade de trabalhar com os leigos e aproveitar ao máximo as suas capacidades profissionais. Quais são, neste momento, as principais frentes de batalha’ do Instituto a nível interno e externo? a nível interno, o primeiro ponto é o tema vocacional. Temos uma geografia vocacional que mudou. Da Europa deslocou-se para a África. Deveríamos ter um pouco mais de latino-americanos para equilibrar a nossa realidade geográfica vocacional. O segundo grande desafio é financeiro. a Europa manteve sempre as missões na África e na américa Latina. agora já não é possível, pela crise económica. O terceiro grande desafio interno é a organização do Instituto. Uma organização renovada para um mundo novo. Externamente vejo, antes de mais, que quanto à Europa é necessário saber em que consiste anunciar Jesus Cristo. É um grande desafio. Não basta falar. Hoje é preciso fazer mais. Depois temos o grande desafio asiático. Estamos no princípio da nossa missão na Ásia e precisamos dela para continuarmos a ser missionários. E temos também a África, com as situações de guerra ou de conflitos, como na Costa do Marfim, Congo e Etiópia, ou no Quénia com o problema tribal que é muito forte. Na américa Latina, o Equador e a Colômbia são lugares verdadeiramente difíceis, e há a amazónia [Brasil] onde o trabalho com os indígenas tem suscitado polémicas por causa do problema político. O Instituto tem sido chamado a auxiliar as dioceses onde há falta de sacerdotes. Isso colide com a verdadeira vocação de um missionário? Em Portugal, Espanha e Itália pedem-nos efetivamente para substituir (na pastoral local) a falta de vocações diocesanas. Mas isso não deveria ser o nosso trabalho. Nós devemos ir onde ninguém vai. Não somos chamados para trabalhar nas paróquias, mas nas margens da sociedade, onde ninguém vai. Uso muitas vezes este exemplo: numa procissão, o padre diocesano deve estar na condução da procissão, mas o missionário deve estar com as pessoas nas margens, ao lado. Esteve no Congo e passou por muitas privações. Que memórias guarda desse tempo? Fui para a República Democrática do Congo como diácono e lá fui ordenado sacerdote, no meio da floresta. Tinha então 25 anos. Passei lá 18 anos, durante o período da guerra. Primeiro trabalhei na floresta junto dos pigmeus, depois quando fui ordenado sacerdote fui trabalhar para a capital. aí passei o tempo da guerra, que já fez cinco milhões de mortos, uma guerra que ainda persiste. Foi um período muito duro para a população e para nós. Vimos muitos mortos. Mas foi sobretudo uma presença significativa: o missionário estava presente no meio das pessoas nos momentos mais difíceis e partilhava com elas as privações dos pobres. agora, como Superior Geral, deve passar por alguns momentos de inquietação.como os consegue ultrapassar? O que causa mais sofrimento é por vezes sentir-me só. Mas tenho duas coisas muito minhas. Primeiro, como carácter, procuro não me levar exageradamente a sério. Procuro rir, ter um certo bom humor perante aquilo que acontece. Isto ajuda a não dramatizar, a não ver problemas por toda a parte. Em segundo lugar procuro cultivar a relação, a amizade, também com pessoas fora do Instituto, fora do mundo habitual de trabalho. É um modo para viver uma vida normal. Sempre que posso, vou ter com os meus irmãos, com amigos de aldeia com quem cresci. Isso ajuda-me muito. Depois, naturalmente, é importante também a espiritualidade: a oração, o contacto com a Palavra de Deus. Gosto do Evangelho que me dá a sabedoria para saber viver. Qual é para si o modelo de missionário ideal? Fundamentalmente é o missionário que sabe escutar as pessoas. Vivemos num mundo onde todos falam e encontrar alguém que escuta é a coisa mais bela. Por isso o missionário para os dias de hoje deve ser alguém que saiba escutar. alguém que vai onde ninguém quer ir. Deve ser essa a nossa característica: estar nas situações onde mais ninguém quer estar, no meio de pessoas abandonadas e em dificuldade. Finalmente, que seja um homem de Deus, que saiba transmitir espiritualidade porque hoje as pessoas procuram quem saiba falar de Deus, com a palavra e sobretudo com o testemunho da vida.