Ezio Roattino, missionário da Consolata, trabalha há mais de 30 anos com o povo Nasa, na cordilheira andina, Colômbia. O episódio que nos conta hoje pode marcar o início do fim de um conflito que dura há décadas
Ezio Roattino, missionário da Consolata, trabalha há mais de 30 anos com o povo Nasa, na cordilheira andina, Colômbia. O episódio que nos conta hoje pode marcar o início do fim de um conflito que dura há décadas Domingo, 8 de julho, 10h30 da manhã. Em Toribio, Vale do Cauca, Colômbia, ouviu-se um estrondo e o povo saiu à rua em sobressalto. Que aconteceu?, perguntavam. Um explosivo tinha caído sobre o Centro Médico, a Instituição de Saúde indígena, ferindo quatro enfermeiras e atingindo gravemente Helena Briceno, coordenadora da enfermaria, que ficou com uma perna amputada e teve que ser transportada para uma clínica, em Cali. alguém a ouviu gritar: ajudem-me, ajudem-me, não me deixem morrer – que se traduz por não deixem que me matem. Naquele grito, que refletia as agonias do passado, gritava Toribio, gritava a Colômbia. Os indígenas que estavam em assembleia na casa comunal de Manzano, com o governador do Cabildo, considerando o absurdo da morte entrar na casa onde se cura a vida, sem esperarem autorizações, sem cálculos de prudência, obedecendo apenas à suprema lei da consciência livre e indignada, levantaram-se e gritaram: basta. Dirigiram-se ao alto Manzano, onde estava um batalhão das Forças armadas Revolucionárias Colombianas (FaRC), sequestraram as armas e desmontaram o lança-granadas, limpando o caminho para o dia 9 de julho, aniversário da maldita chiva-bomba [que havia rebentado junto do mercado de Toribio, em 2011]. O dia estava programado para a guerra. Mas não foi assim. O 9 de julho de 2012 foi dia de marcha pela paz, com a decisão de desmilitarizar o território. Houve celebração da eucaristia, pela manhã. Esta hora’ já entrou na história de Toribio e da Colômbia. Ouço dizer que as autoridades indígenas poderiam ser processadas por quererem a desmilitarização do território. Dizem que estão contra o Estado. Não estão contra o Estado, estão contra a guerra, que significa estar contra a morte, que é resultado da guerra e que necessita de atores armados. Mantenhamos a lucidez do pensamento e a verdadeira razão de um projeto de paz, que obviamente precisa de um clima de confiança e um plano de garantias. Recordemos o artigo primeiro da Constituição da Colômbia (as primeiras palavras da Magna Carta do país): Colômbia é um Estado social de direito, organizado em forma de República unitária, com autonomia das suas entidades territoriais, fundada no respeito pela dignidade humana. Os indígenas fizeram renascer a Constituição da República, transformando a letra em história. Creio que os constitucionalistas podem interpretar o levantamento destes dias com o peso de cada palavra do artigo primeiro, como um grito de obediência ao coração da Constituição. além disso, os indígenas lembram aos legisladores que continuam à espera que seja posto em marcha o madanto constitucional das entidades territoriais. a imprensa e os meios de comunicação (não todos) não fizeram sempre um serviço à verdade e à paz. E digo isto com pelo respeito pela liberdade de opinião e de expressão. Porém, a verdade tem direitos primários. Uma fotografia de impacto mediático, às vezes pode tapar mais, do que revelar. a complexidade da situação e os custos do conflito pedem mais análise. Também em Toribio temos muitas fotografias de indígenas maltratados, venham e podem vê-las. Nos nossos cemitérios, em muitas partes do território ancestral, há uma cruz que recorda um derramamento de sangue. O Presidente da República veio a Toribio numa hora difícil: foi recebido numa casa paroquial supermilitarizada. Fomos tocados pela circunstância. Mas doeu-nos muito porque Evangelho e armas não podem conviver na mesma casa. Esperamos outra visita do Presidente numa casa desmilitarizada, sentado numa mesa de irmãos, com um brinde alegre do vinho novo da paz. Toribio, Colômbia, chegou uma hora nova: domingo, 8 de julho de 2012, 10h30 da manhã. Um grito: não deixem que me matem. Um levantamento: basta. O tempo não parou, porque a história caminha e prossegue. Neste caminho, as crianças vão à nossa frente, olham para nós, agarram nas nossas mãos e pedem que não deixemos que as matem. Elas merecem algo mais que um recrutamento para a guerra e um tumulo antes do tempo.