Especialista no diálogo entre as religiões, Henri Teissier, arcebispo emérito de argel, acredita que o clima de tensão entre a Igreja católica e o Estado chinês vai ser ultrapassado, como aconteceu nos países do Leste da Europa
Especialista no diálogo entre as religiões, Henri Teissier, arcebispo emérito de argel, acredita que o clima de tensão entre a Igreja católica e o Estado chinês vai ser ultrapassado, como aconteceu nos países do Leste da EuropaHomem fraterno, de coração aberto a todos os povos e culturas, Henri Teissier, arcebispo emérito de argel, esteve em Portugal, a convite dos Missionários da Consolata, para várias conferências, no âmbito do tema Fé, Missão e Martírio. Em entrevista à Fátima Missionária, que aqui publicamos na íntegra, manifestou-se esperançado no reforço do diálogo entre cristãos e muçulmanos e preocupado com o extremismo religioso nos países africanosFátima Missionária Na apresentação em Portugal do seu livro baseado no diário do Irmão Cristophe Lebreton, realçou a amizade e a partilha da oração como elementos essenciais ao diálogo inter-religioso. Isso quer dizer que o trabalho fundamental deve ser feito nas bases? Henri Teissier Penso que devemos procurar estabelecer o diálogo entre cristãos e as pessoas de outras religiões a todos os níveis. Naturalmente é precioso poder estabelecer o diálogo ao nível dos responsáveis das comunidades, porque poderão encorajar os seus fiéis a entrar neste diálogo, mas é também importante fazê-lo na base, entre as pessoas simples, através dos encontros de todos os dias. Às vezes há maior sinceridade nos diálogos feitos na base, com pessoas mais simples, do que com os responsáveis que por vezes entram no diálogo por razões de política geral ou de aproximação interessada. Por isso, penso que é necessário encorajar este diálogo a todos os níveis, e por conseguinte, se as pessoas de outras religiões vêm a Portugal, não vamos ficar à espera que o cardeal Patriarca os receba. É preciso encontrar pontos em comum e ocasiões de encontro que proporcionem esta partilha, sobretudo entre os jovens, porque os jovens são desejosos de encontrar culturas de outras convicções, através da ação e da proclamação do reino de Deus. FM Como encara o crescimento do movimento islâmico nos países da África central? HT até hoje o Islão africano tinha conhecido uma evolução distinta dos países árabes. as sociedades africanas tinham a sua própria vitalidade, mesmo nos países onde os cristãos eram mais numerosos. as igrejas locais eram respeitadas, tinham uma palavra a dizer na sociedade. acontece que, há 50 anos, vários jovens partiram para universidades árabes e voltaram para os seus países com uma ideia da evolução da religião muçulmana que é a ideia da sociedade árabe. É pena porque os países árabes têm uma identidade na qual o Islão e a cultura se misturam, uma vez que os Islão foi revelado em árabe, o alcorão foi escrito em árabe, e por conseguinte a distinção entre a sociedade, a cultura e a religião nos países árabes não é a mesma que existe nos países africanos. Estamos muito preocupados com esta evolução sobretudo na Nigéria onde há cerca 160 milhões de habitantes e os cristãos são tão numerosos como os muçulmanos. Os cristãos estão mais presentes no centro e no sul e os muçulmanos no norte. Mas o grupo de extremistas, que se desenvolve principalmente no norte e que acolheu as ideias fundamentalistas do mundo árabe, não representa o Islão da Nigéria. Vamos esperar que a maioria dos muçulmanos da Nigéria possa fazer compreender aos extremistas que eles prejudicam o país. E não devemos considerar apenas o extremismo de certas correntes do islamismo, mas também, infelizmente, o de certas correntes católicas. FM Que análise faz ao clima de tensão entre as autoridades chinesas e a Igreja católica? HT a relação entre a China e a Igreja católica é um processo longo e é claro que a Santa Sé está muito atenta a esta evolução. a relação entre a China e o resto do mundo continua a desenvolver-se. Em muitas famílias da Europa ocidental há jovens que foram fazer estudos ou estágios na China. Podemos portanto esperar que, num ritmo mais ou menos acelerado, os responsáveis da sociedade chinesa acabarão por compreender que a liberdade da Igreja não é um atentado contra a soberania do Estado chinês. Mas é preciso recordar que as dificuldades que existem entre o Estado chinês e a Igreja não são exclusivas das relações entre a China e Igreja católica. Há problemas que tocam também toda a sociedade chinesa. Existem as mesmas dificuldades entre o Estado chinês e as associações de defesa dos direitos humanos, e entre o Estado chinês e os muçulmanos. Por conseguinte, devemos saudar a coragem dos nossos irmãos católicos chineses e contar com a sabedoria da Santa Sé para que a Igreja possa trabalhar segundo a sua tradição, particularmente na questão da escolha dos bispos, e que ao mesmo tempo a rutura não seja consumada entre o Estado chinês e a Igreja católica a fim de que as comunidades que estão nesse país possam desenvolver-se e assim preparar o futuro. E o futuro será certamente a liberdade de consciência. É uma evolução mundial que acabará por atingir o Estado chinês como atingiu um dia os países de Leste da Europa, o mundo comunista soviético. FM – ainda se confunde o ecumenismo com diálogo inter-religioso? HT O ecumenismo é o diálogo dos cristãos entre si. Nós temos a mesma fonte que é a Bíblia, temos a mesma teologia, que é a teologia dos primeiros concílios (Niceia, Constantinopla, Éfeso, Calcedónia) e temos a esperança de nos reunirmos um dia, quando Deus quiser, na mesma família, a família de todas as Igrejas. O diálogo inter-religioso reúne tradições que não têm à partida pontos em comum. Os cristãos apoiam-se na Bíblia, sobretudo para o conhecimento de Jesus e o conhecimento de Deus, os muçulmanos apoiam-se no alcorão, sobretudo sobre a vida de Maomé, os budistas apoiam-se na vida de Buda e na sua doutrina. Portanto, no diálogo inter-religioso não há esperança de um encontro na mesma família religiosa no fim do diálogo e não há fontes comuns no ponto de partida, porque uns partem da Bíblia os outros do alcorão. Mas existe a convicção de que na humanidade há problemas comuns e que Deus inspira as consciências retas. Por conseguinte, podemos encontrar-nos para procurar em conjunto a maneira de iluminar os problemas da humanidade e podemos também ver neste diálogo uma dimensão espiritual. E quando o diálogo é sincero há homens e mulheres sustentados pelo apelo de Deus que procuram resolver os problemas da humanidade atual. FM Pode dar um exemplo? HT Sim. Na argélia trabalhámos muito para ajudar as crianças com deficiências. Dizer às famílias com uma criança deficiente que essa criança deve ser respeitada, que podemos, se nos ocuparmos dela, desenvolver tudo aquilo que ela tem em potência e dar deste modo a estas famílias a alegria de ver sair das suas casas a criança que até aí vivia fechada, vê-la entrar num centro onde se procurará construi-la humanamente, permitir a estas famílias que têm as mesmas dificuldades diante de uma criança deficiente de se apoiarem mutuamente tudo isto pode ser feito entre cristãos e muçulmanos, e não se trata só de um trabalho social. Trata-se de revelar a uns e a outros a dignidade de cada pessoa humana inclusive aquelas que não têm as mesmas possibilidades que têm os outros.com este trabalho feito em conjunto entre cristãos e muçulmanos ou outras religiões responde-se a um problema humano e responde-se na linha da revelação que nos diz que cada pessoa humana tem a sua dignidade, particularmente aqueles que mais sofrem. Portanto, o diálogo inter-religioso tem as suas próprias tarefas que não são as mesmas do diálogo ecuménico. FM Na sequência das primaveras Árabes, em muitos países o poder foi tomado pela religião islâmica. a experiência da Igreja Católica, que se foi separando do Estado progressivamente, pode servir de exemplo futuro a estas nações? HT Cada tradição religiosa tem as suas convicções: os muçulmanos têm a convicção de que a religião deverá inserir-se na sociedade e deve dar a todos os cidadãos um quadro que possa responder às suas convicções religiosas, não só pessoais, mas também no que se refere à organização da sociedade. O que se passou nas Igrejas cristãs, que progressivamente libertaram as suas relações com os Estados, isso não é assim tão evidente. Vejam-se por exemplo as relações nos países ortodoxos. a relação da Igreja ortodoxa russa com o Estado não é tão fixa nas distinções das próprias liberdades recíprocas como a França e ou Portugal; o mesmo se diz da Igreja ortodoxa grega. Não é necessário enfrentar todos os problemas a partir daquilo que se passou no Ocidente. Numa reunião em participei em Istambul, o Estado Turco que é um Estado laico, convidou os responsáveis religiosos cristãos e muçulmanos do Médio Oriente, principalmente por causa da situação da Síria. Ora, o discurso do primeiro-ministro turco, do ministro dos assuntos Estrangeiros e do ministro dos assuntos Religiosos eram discursos religiosos. Estes responsáveis arranjaram uma argumentação religiosa a partir do alcorão ou das tradições religiosas, a partir da evocação das tradições religiosas existentes na Palestina, na Síria, na arábia. O debate estabeleceu-se longamente entre certos participantes que consideravam que um Estado religioso não pode respeitar a liberdade dos cidadãos e aqueles muçulmanos que estavam na corrente islâmica disseram não, nós temos a intenção de respeitar todos os cidadãos. a religião muçulmana é um dom de Deus à humanidade para a liberdade do homem, para a plenitude do homem. Nós queremos construir sociedades muçulmanas que respeitem também as minorias. O debate continua aberto, mas eu creio que não se pode dizer que há um só caminho, que a laicidade do tipo europeu ocidental será o futuro das relações entre os muçulmanos e as suas sociedades. Recordemos que neste momento até a Rainha da Inglaterra é a chefe da Igreja anglicana. FM Como está neste momento o diálogo entre cristãos e muçulmanos na argélia? HT Nestes últimos anos – uma vez que deixei o meu lugar ao meu sucessor (que é um bispo jordaniano) – surgiram problemas novos que nasceram a partir da ação de grupos evangélicos, os quais constituíram pequenas comunidades de convertidos. Estas comunidades fizeram ruído, sobretudo no que diz respeito à liberdade religiosa e estabeleceu-se um debate. Na imprensa houve uma centena de artigos publicados sobre este tema: podemos admitir que num país muçulmano que declarou na sua constituição que o Islão é a religião do Estado se deixem livremente grupos a fazer conversões no país? a discussão desenrolou-se sobretudo na imprensa francófona que insistiu no facto de que a constituição argelina declara que o Islão é a religião do Estado, mas também declara que a liberdade de consciência deve ser assegurada a todos os cidadãos. Portanto, devemos reconhecer que o cidadão de origem muçulmana que escolhe uma outra religião pode fazê-lo livremente. Estas tensões conduziram o Estado argelino a tomar em 2006 uma medida que proíbe o proselitismo, punindo-o com a prisão e multas. O debate prolongou-se ainda mais. Em 2010 o ministério dos assuntos Religiosos organizou um colóquio entre todos os responsáveis muçulmanos e os responsáveis das Igrejas cristãs sobre este tema do proselitismo. Penso que é a primeira vez que num país muçulmano o responsável nacional do Islão reúne cristãos e muçulmanos para refletir sobre este tema do proselitismo. Simplificando um pouco a questão, podemos dizer que as conclusões foram as seguintes: O Islão é a religião do Estado; portanto o Estado deve proteger o Islão e por conseguinte o Estado proíbe o proselitismo; mas a liberdade de consciência é reconhecida na Constituição e por conseguinte as decisões dos indivíduos restam livres. É uma maneira de ver que não é fácil de compreender. Quer dizer que não deve haver proselitismo organizado mas as decisões pessoais vêm de cada indivíduo e das suas convicções. Este debate permanece na sociedade argelina. FM E esse debate pode favorecer ou prejudicar os cristãos? HT Os responsáveis do Estado limitaram por exemplo a concessão de vistos aos padres, aos religiosos e religiosas que pediam para entrar na argélia. Ora, nós precisamos de renovar o pequeno grupo cristão da argélia. Portanto esta medida é para nós muito difícil de assumir. Pedimos ao Estado que revisse esta posição. Ficamos à espera. Portanto, globalmente as coisas não mudaram. Isto é, as relações entre os cristãos e a sua vizinhança são boas, mas com a administração do Estado estamos numa posição de tensão sobre este tema. Mas não se deve pensar que isto diz respeito a todos os domínios da sociedade. Por exemplo, como última ação antes ser substituído pelo meu sucessor, fiz restaurar a basílica de Nossa Senhora de África e o primeiro contributo que nos foi dado foi o contributo do Estado argelino. Desde a minha demissão, começámos a fazer o restauro da basílica de Santo agostinho de Hipona, e também aqui a primeira contribuição que nos foi dada foi a do Estado argelino, o que nos permite voltar-nos para outras participações. as estruturas europeias ficaram impressionadas ao ver que um país muçulmano se liga a uma iniciativa como esta, da restauração de um edifício cristão de culto, e estes dois restauros permitiram fazer encontros entre responsáveis muçulmanos do sul do mediterrâneo e coletividades locais de tradição cristã no norte do mediterrâneo.